CAPÍTULO V
1
...A liturgia nagô serve de padrão e modelo para as festas de todos os candomblés, com pequenas alterações que não modificam essencialmente a sua fisionomia.
...O tempo de iniciação, entre os nagôs e os jêjes de cerca de um ano, vai-se reduzindo com os Angolas e os Congos, até ficar em apenas 17 dias entre os caboclos, ou mesmo zero, em certos casos. Se as filhas nagôs e jêjes se dedicam, por toda a vida, a um único orixá, os Angolas e os Congos, e especialmente os caboclos, podem receber em si dois, três ou mais encantados. As filhas nagôs e as vôdúnsi jêjes, quando possuídas pelos deuses, dançam de olhos fechados, com movimentos para dentro do círculo. Os candomblés de Angola e do Congo seguem mais ou menos esse exemplo, mas os encantados caboclos dançam de olhos abertos, com movimentos para fora. A dança dos candomblés nagôs e jêjes, e em menor escala Angola e Congo, é pesada, desgraciosa e monótona, quase senhorial, exigindo movimentos apenas de braços e pernas, exceto em determinadas ocasiões, enquanto a dança dos candomblés de caboclo é animada, vivaz e decorativa, permitindo muito de iniciativa pessoal, com flexões do tronco e dos joelhos e súbitas reviravoltas do corpo. Os deuses, depois de manifestados, em todos os candomblés, são recolhidos para o interior da casa e vestidos com as suas paramentas especiais. Os candomblés de caboclo, entretanto, quase nunca seguem esse costume – e é comum que se dance mesmo com a vestimenta profana. Entre os deuses nagôs e jêjes, somente Ossãe fuma, somente Exu come cachaça e fumo, mas, entre os caboclos, a Caipora e o Boiadeiro pitam cachimbo, Martim-Pescador bebe canadas de cachaça e os demais encantados fumam charuto. Nos candomblés nagôs e jêjes, os atabaques são percutidos com cipós chamados ôghidavís; nos candomblés de Angola e do Congo, ora com os ôghidavís, ora com as mãos; nos candomblés de caboclo, invariavelmente com as mãos. As insígnias dos ôrixás nagôs e jêjes vão perdendo as suas características, nos candomblés de Angola e do Congo, pela sua substituição por objetos semelhantes, singulares ou curiosos, e são gradual ou totalmente eliminados nos candomblés de caboclo. Somente nos candomblés de caboclo pode suceder que pessoas completamente estranhas à casa, quando em transe, dancem, sem cerimônia, em meio aos demais encantados.
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Oxunmarê
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...Os candomblés obedecem a certos ritos de purificação, destinados a preparar a casa para o novo ciclo anual de festas.
...Em todos os candomblés se realiza, numa determinada sexta-feira do ano, a festa da água de Oxalá. Esta cerimônia, no Engenho Velho, se realiza na última sexta-feira de agosto e no Opô Afonjá (Aninha) na última sexta-feira de setembro. Às primeiras horas da manhã, ainda com escuro, as filhas, completamente vestidas de branco, vão em procissão à fonte que serve ao candomblé, carregando talhas, potes, moringas, quartinhas e outros vasos de barro, em meio a cânticos e danças, buscar água para renovar a provisão da casa. No barracão, os atabaques roncam, enquanto as filhas, em coluna simples, com a vasilha ao ombro, fazem o caminho entre a casa e a fonte, à luz vacilante da aurora. A noite, nesse mesmo dia, o candomblé está em festa. Outra versão da água de Oxalá é a matança de Oxunmarê, realizada por alguns candomblés no Ano-Bom, com a circunstância de que se sacrificam animais para Oxunmarê, o arco-íris, e não para Oxalá.
...Os presentes para a mãe-d'água e o caruru de Cosme e Damião, como abrem os caminhos, são de certa maneira cerimônias de purificação de que os candomblés, coletivamente, se podem valer.
...Os ogãs usam o copo d'água para limpar os seus passos.
...As filhas, quando se sentem necessitadas de purificação, fazem bôrí (dão de comer à cabeça) ou lavam as suas contas. Estas cerimônias implicam na idéia de pecado, por ação ou por omissão, – o desleixo no culto dos deuses. O bôrí se realiza no interior do candomblé e tem por objetivo aplacar as iras do orixá, considerado dono da cabeça da filha, livrar a pessoa de preocupações e dar-lhe saúde. O chefe do candomblé faz uma mistura de ôbi, ôrôbô, ôri e limo da Costa, que esfrega sobre o crânio da filha, e em seguida faz correr sobre a sua cabeça (e, portanto, sobre o orixá) o sangue dos animais prediletos do deus, sacrificados no momento. O bôrí se faz sobre uma esteira e a filha deve estar ajoelhada durante a cerimônia. A lavagem das contas (que representam o ôrixá da pessoa), com sabão da Costa e as folhas especiais do deus, é outra cerimônia de purificação muito comum, com o mesmo resultado do bôrí.
...Homens e mulheres podem, anualmente, purificar o corpo e o espírito a 24 de agosto, na misteriosa fonte de São Bartolomeu, nas vizinhanças de Pirajá, – uma pancada d'água, escondida na floresta, que cai do alto de uma penedia batida por ligeiro raio de sol, em que por vezes surge a serpente do arco-íris.
13
...Os dias da semana são distribuídos, de acôrdo com a tradição nagô, pelos vários orixás, obtendo-se o seguinte quadro:
Segunda-feira – Exu e Omôlu.
Terça-feira – Nanã e Oxunmarê.
Quarta-feira – Xangô e Yansã.
Quinta-feira – Oxóce e Ogún.
Sexta-feira – Oxalá.
Sábado – Yemanjá e Oxún.
...Há certa lógica nesta combinação dos orixás. Na terça-feira, temos a chuva e o arco-íris; na quarta, os raios e os ventos, – a tempestade; na quinta, a caça e as artes manuais; no sábado, a água do mar e a água doce. A sexta-feira é consagrada a Oxalá por influência do catolicismo, mais exatamente do culto do Senhor do Bonfim. Na segunda-feira, Exu garante a felicidade dos dias seguintes e Omôlu garante a saúde e o bem-estar, purificando a semana.
...O domingo se dedica coletivamente a todos os ôrixás.
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Oxalá
(Cap. I – 3)
...Vejamos agora o barracão – tal como era até 1948, pois, em parte por influência deste livro, dele resta apenas a coluna central.
...Esta sala das festas mede 11,65 m de comprimento por 10,20 m de largura, tem duas portas, uma sobre a ala esquerda (h), outra sobre a ala direita (i), e cinco janelas de pouco mais de um metro de largura, três sobre a ala esquerda, duas sobre a outra face do edifício. Três outras portas abrem para os cômodos interiores. A área do barracão era grandemente diminuída em virtude do espaço reservado aos assistentes femininos (a), que media ora 0,90 m, ora 0,85 m, pelo altar católico (b), pelo assento de Exu (c), pelas cadeiras de confirmação dos ogãs (d) e das ékédes (g), pelo lugar reservado à orquestra (f) e pela coluna central (e), que repousa sobre um estrado de madeira de pouco mais de um metro quadrado de superfície. Em redor desta coluna (e), dançavam as filhas, no sentido indicado pelas setas, e, como as filhas entravam e saíam pela porta do corredor, também este trecho ficava obstruído. Bancos de madeira e cadeiras de todos os tipos alinhavam-se na direção indicada pelas linhas interrompidas. A quantidade de ar e de luz disponível, já insuficiente em condições normais, ficava extremamente reduzida pela aglomeração de pessoas nas portas (h e i), na escadaria (j) e nas janelas do barracão. Pode-se calcular, sem grande esforço, o enorme transtorno que tal aglomeração deveria causar, especialmente nos dias de grandes festas.
...A cobertura do Engenho Velho é de simples telha-vã.
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in Candomblés da Bahia; Carneiro, Edison – 3ª Ed. – Conquista – Rio de Janeiro, 1961
Ilustrações de Carybé e Kantor
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