18.
Vale a pena ser discreto?
Não sei bem se vale a pena.
O melhor é estar quieto
E ter a cara serena.
22.
Levas chinelas que batem
No chão com o calcanhar.
Antes quero que me matem
Que ouvir esse som sem parar.
24.
Teus brincos dançam se voltas
A cabeça a perguntar.
São como andorinhas soltas
Que inda não sabem voar.
38.
Ouvi-te cantar de dia.
De noite te ouvi cantar.
Ai de mim, se é de alegria!
Ai de mim, se é de pesar!
40.
O malmequer que arrancaste
Deu-te nada no seu fim,
Mas o amor que me arrancaste,
Se deu nada, foi a mim.
50.
O burburinho da água
No regato que se espalha
É como a ilusão que é mágoa
Quando a verdade a baralha.
61.
Eu te pedi duas vezes
Duas vezes, bem o sei.
Que por fim me respondesses
Ao que não te perguntei.
85.
Tenho um livrinho onde escrevo
Quando me esqueço de ti
É um livro de capa negra
Onde inda nada escrevi
96.
Dei-lhe um beijo ao pé da boca
Por a boca se esquivar.
A idéia talvez foi louca,
O mal foi não acertar.
140.
Há um doido na nossa voz
Ao falarmos, que prendemos:
É o mal-estar entre nós
Que vem de nos percebemos
146.
Tem a filha da caseira
Rosas na caixa que tem.
Toda ela é uma rosa inteira
Mas não a cheira ninguém.
177.
Compreender um ao outro
É um jogo complicado,
Pois quem engana não sabe
Se não estava enganado.
182.
Tens um anel imitado
Mas vais contente de o ter.
Que importa o falsificado
Se é verdadeiro o prazer.
202.
Fiz estoirar um cartucho
Contra a parede do lado.
Assim farei eu à vida,
Que o sonhar fez-me assoprado.
220.
Deixaste cair no chão
O embrulho das queijadas.
Riste disso — e porque não?
A vida é feita de nadas.
223.
Tenho uma pena que escreve
Aquilo que eu sempre sinta.
Se é mentira, escreve leve.
Se é verdade, não tem tinta.
324.
No dia de S. João
Há fogueiras e folias
Gozam uns e outros não,
Tal qual como os outros dias.
in Quadras ao gosto popular; Pessoa, Fernando – Edições Ática – Lisboa, s/d
Ilustração: "Papai dormiu", Ana Maria Dias
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