outubro 17, 2008

O jovem Brecht



"Naturalmente, esse cara estava sempre com a barba por fazer. Ele cheirava como soldados durante uma marcha. E seu senso de humor angular, malicioso, não parecia urna coisa conveniente para senhoras. Havia um indubitável odor de revolução em torno dele. Isso ficava claro na maneira que cantava as suas cruas baladas. Mas quando ele as cantava, com sua voz aguda, as mulheres desmaiavam."

É assim que o escritor Lion Feuchtwanger descreve Brecht na juventude, quando o conheceu nos botequins de Munique, na década dos vinte. O futuro maior dramaturgo do século já fora enfermeiro na Grande Guerra, abandonara os estudos de Medicina, escrevera três peças, alimentava algumas idéias violentas sobre o teatro, outras mais violentas ainda sobre a civilização ocidental e passava seu tempo nos botequins da vida, bebendo cerveja e cantando suas canções, acompanhando-se ao violão. Dizem que cantava bem: "foi assim que ele apanhou noventa por cento de suas mulheres" — disse um amigo seu, com uma ponta de inveja. Os amigos de Brecht, na época, incluíam — além de escritores e intelectuais — artistas de cabaré, cômicos, lutadores de boxe e uma cambada de marginais de todo o tipo.

Tem gente por aí que diz que o jovem Hegel é que era o quente, o inventor da dialética; o velho era um reacionário, a serviço de urna ordem estabelecida autoritária. Outros, igualmente, preferem o jovem Marx, com seu humanismo existencial e sua profunda intuição da criminosa exploração da energia humana por uma organização social; o velho era um economista meio sobre o quadrado, isto é, mais um cientista chato. Com Brecht, acontece uma coisa parecida. Nós já conhecemos o Brecht da maturidade, através de sua obra-prima, Galileo Galilei: a sua sólida crença na Razão, a sua disciplina, a sua austeridade e o seu equilíbrio realista. As peças da maturidade de Brecht são tão bem conceituadas, tão rigorosas e tão esmagadoramente estruturadas, que nem o próprio Georg Lukács conseguiu deixar de gostar delas. Mas o jovem Brecht era fogo.

Ele acreditava que vivia num século atormentado em que toda a pureza do instinto e toda a esperança de que ele pudesse regular, de maneira racional e saudável, a vida humana, haviam sido esmagadas pela violência de uma civilização doente, urna cultura pervertida que conseguiu deformar, em nós, os próprios instintos. Para Brecht o horror de tal imagem do mundo era demasiado evidente. Ele vivia, escrevia e criava de acordo com ela. Baal, sua primeira peça, escrita quando tinha apenas vinte anos, conta a história de um poeta vagabundo, feio, solitário, amoral, bruto, que obedece cegamente aos seus instintos: uma personalidade psicopática, como diria o psiquiatra mais próximo. A história termina num verdadeiro banho de sangue. A segunda peça, Tambores na Noite, escrita na mesma época, conta a história de um soldado que volta da África para encontrar, nas ruas de Berlim, a revolta spartakista e, em casa, a noiva grávida de outro. O soldado trai a revolta e aceita a amada infiel: "Sou um porco e os porcos vão para casa" — diz ele. A terceira peça é Na Selva das Cidades, terminada quando Brecht completava vinte e cinco anos.

Em geral, os críticos consideram a autodisciplina que Brecht começa a impor-se depois dessas peças — principalmente a partir de Um Homem é um Homem, de 1925 — como uma evolução. Ele domou os delírios selvagens dessas primeiras obras e, segundo as palavras de José Celso Martinez Corrêa, "com a presença do nazismo, dos stalinismos e dos neocapitalismos, teve que amansar, estruturalizar e institucionalizar para enfrentar o inimigo com cálculo". Mas a força, a graça, a excitação e a capacidade de insuflar tanto nervos quanto cérebros, dessas peças, permanece intactas. Digo mais: talvez tenham adquirido vulto. Pois, mais do que objeto de admiração, elas são, hoje, uma fonte legítima de inspiração.

(Pasquim nº 16 – de 9 a 15/10/69)


in Negócio seguinte:; Maciel, Luiz Carlos – Editora Codecri – Rio de Janeiro, 1981

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