dezembro 04, 2008

Freud e a mística *


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Paul Laurent Assoun
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Nosso escopo é definir a relação de Freud com a mística, segundo os diversos pontos de vista que essa relação comporta. Tal projeto requer uma espécie de modelização dos níveis onde a coisa analítica encontra o fenômeno místico. Seria, nos parece, um erro definir, de imediato, um conceito geral de "misticismo" para confrontá-lo, em seguida, com o que Freud diz a respeito. É mais importante permanecer ao nível da "démarche" propriamente freudiana, assinalando os lugares onde o fenômeno místico se manifesta em seu horizonte. Nesse sentido, é a postura de Freud perante o fenômeno místico que examinaremos.
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Como não evitaremos a complexidade das variáveis implicadas na relação freudiana com a mística, a dificuldade consiste em discemir os pontos de focalização dessa relação. Sendo o nosso objetivo a reconstituição do cenário do encontro entre Freud e as místicas, convém escalonar os planos do encontro. A noção de "mística" remete, com efeito, a diversos aspectos conotativos que criam muitos pontos de cristalização do discurso analítico, à medida que este a tome em consideração. Na falta de qualquer definição, que seria limitativa por sua generalidade, distinguiremos, de início, as dimensões desse fenômeno, considerando os tipos de problemática que envolve.
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Para balizar nosso campo, recorreremos ao
Vocabulário da filosofia de Lalande, cujo rigor na definição léxica nos fornecerá os marcos do espaço a circunscrever, para melhor explorá-lo. No artigo Misticismo (substantivo equivalente ao alemão Mystik), são enunciadas várias definições.
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O sentido próprio é formulado da seguinte maneira: "Crença na possibilidade de uma união íntima e direta do espírito humano ao princípIo fundamental do ser, união que constitui, a um só tempo, um modo de existência e um modo de conhecimento alheios e superiores à existência e ao conhecimento normais."1
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Observa-se que a mística é, de imediato, referida à esfera da crença, e que o misticismo constitui, antes de tudo, uma certa tese, que se pode qualificar de "unionista", a qual finalmente remete à teoria do conhecimento. Configura-se uma posição mística havendo adesão subjetiva (crença) à possibilidade de uma união do espírito ou do sujeito com o princípio fundamental do ser. Essa definição tem o mérito de não definir a mística pela religião, ou como modalidade de experiência religiosa: é antes pelo viés do problema primordial da crença que o problema da mística reencontra o da religião. Pela mesma razão, o termo Deus é omitido nessa definição primeira, que menciona o princípio fundamental do ser como termo objetal da união mística.
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Em compensação, a definição mistura o que é de nosso interesse distinguir mais rigorosamente: o plano do conhecimento e da vivência, que figura na fórmula precedente sob a forma implícita de "experiência" ou modo de existência e, em razão do contexto da época, do ponto de vista da patologia (tornando-se "mística" o contrário de "norma!", termo fortemente normativo). Por outro lado, a definIção B de Lalande reagrupa num tipo de
experiência sui generis o que se pode designar como mística: "Conjunto das disposições afetivas, intelectuais e morais que se vinculam a essa crença" (definida acima). Nesse segundo aspecto, a "mística" remete a um tipo de processo finalizado e estruturado por um "conjunto de práticas", que conduzem a um "estado" determinado,2 codificado depois por "'doutrinas exprimindo os conhecimentos que são considerados como o seu fruto".
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Fala-se de "mística", nesse segundo sentido, quando se acham reunidos os fenômenos apresentados como as finalidades da "experiência" vivida e construída: "A aspiração ao absoluto, o esforço de purificação e a ascese, o êxtase, o regresso à vida anterior e a orientação nova do juízo e da conduta, a realização... da vida perfeita".3 É por esse viés axiológico que a mística encontra a ambição própria à experiência religiosa, mas por caminhos profundamente originais.
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Considerada como forma especial de religião, a mística remete a um culto mistagógico, "conjunto de práticas, ritos e doutrinas... de natureza secreta, e reservadas a iniciados".4 O que supõe um mecanismo de transmissão especial, de tipo iniciático.
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Esse apanhado da questão nos basta5 para instruir nossa confrontação, munidos de um instrumento de investigação metódico, cuja funcionalidade nos colocará a salvo de qualquer redução quanto à interpretação das injunções do encontro. A mística implica:
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1 — Uma certa concepção do conhecimento, isto é, das relações entre subjetividade e objetividade — de tipo "unionista", cujas modalidades cabe ainda precisar: em certa medida, aí mesmo reside o aspecto determinante do problema da mística, no sentido que a posição mística baseia-se, em última instância, num certo modo de relacionalidade sujeito-objeto, o qual remete à Teoria do Conhecimento (
Erkenntnistheorie). Por falta de um neologismo mais elegante para traduzir o adjetivo germânico correspondente, falaremos em dimensão gnoseológica para designar este aspecto primordial do problema místico.
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2 — Um certo tipo de experiência (
Erkfahren) ou de vivência (Erleben), caracterizado pela apreensão, no plano da afeição do próprio sujeito vivo, do que justamente se supõe resolvido no plano po conhecimento — ou seja, as "núpcias espirituais"6 do sujeito e do objeto.
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Experiência ao mesmo tempo múltipla — afetiva, intelectual e moral, usando-se as categorias de Lalande — mas unitária, à medida que é pura e simplesmente de gozo, pois a união de sujeito e objeto é vivida como prazer simultaneamente espiritualizado e concreto. Por isso, o misticismo se presta tanto à descrição de "estados" como à sofisticada elaboração de "doutrinas"; vale-se de uma imediaticidade sem, contudo, renunciar a "escolasticar" para elevar tais estados à dignidade de "conhecimentos". 
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1 Vocabulaire technique et critique de Ia philosophie, ed. Felix Alcan, (1926), tomo I, p.496.
2 Op. cit., p. 497.
3 O Vocabulaire retoma aí a caracterização de Emile Boutroux (Le mysticisme, Bulletin de l'Institut psychologique, 1902), que participou do grande movimento de reflexão sobre o misticismo no início do século (ver adiante no presente artigo).
4 Ver Vocabulaire, artigo Mystère, sentido A, ibid., p. 496.
5 Convém observar, porém, que o artigo Misticismo do Vocabulaire postula também a definição como sistema filosófico (no âmbito da história da filosofia eclética e a acepção pejorativa, da qual nos valeremos mais adiante.
6 Expressão reveladora do místico Ruysbroek.
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* "Freud et la mystique", publicado originalmente em Nouvelle Revue de Psychanalise – Resurgences et derivés de Ia mystique, n. 22, automne 1980 {Paris, Ed. Gallimard}.
Tradução: Jayme Benchimol. Revisão técnica: Joel Birman.
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in Religião e Sociedade; 11/2; Outubro, 1984 – Editora Campus – Rio de Janeiro

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