dezembro 06, 2008

Modelos



Em seu lúcido e originalíssimo trabalho, Meditación de la técnica4, ele nos ensina que a técnica é na realidade a produção do supérfluo, pois o supérfluo é necessário ao homem. O animal, ao contrário, é atécnico e contenta-se com o necessário. Diz ele: "He aqui por qué el animal es atécnico: se contenta con vivir y con lo objectivamente necessário para el simples existir" [...] "Pero el hombre és hombre porque para él existir significa desde luego y siempre bien-estar; por eso es a nativitate técnico creador de lo supérfluo. Hombre, técnica y bien-estar son, en última instancia, sinónimos". (...) No tiene duda: el hombre es un animal para el cual sólo lo supérfluo es necesario.
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O animal, em face das suas necessidades e das condições ambientais, adapta-se ao meio. O homem, diante das suas necessidades (infinitas e cambiantes) e das condições ambientais, através da técnica leva o meio a adaptar-se a ele. O homem, por assim dizer, procura dominar a natureza de forma a dispor de condições para dedicar-se ao supérfluo.
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Vou traduzir um trecho da obra de Ortega y Gasset: "Zoologicamente, vida significa tudo o que deve ser feito para subsistir-se na natureza. Mas o homem consegue reduzir esse tipo de vida ao mínimo, a fim de não ter que fazer o que o animal é obrigado a fazer. Nesse espaço que a superação da sua vida animal deixa, dedica-se o homem a uma série de atividades não biológicas, que não lhe são impostas pela natureza, mas inventadas, por ele mesmo. E precisamente a essa vida inventada, inventada como se inventa uma novela ou uma obra de teatro, é que o homem chama de vida humana, bem-estar. A vida humana, portanto, transcende a realidade natural [...].
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Essa preocupação de livrar-se das restrições e contingências da natureza para poder dedicar-se ao que não é natural, mas humano e social, manifestava-se muito fortemente entre os gregos antigos e os romanos. Para eles, a "boa vida" consistia sobretudo no convívio com os seus pares, condição fundamental para a vida política, uma atividade que requeria tempo e, portanto, implicava a necessidade de evitar o esforço quotidiano de "ganhar a vida" e enfrentar as restrições da natureza. Esse tempo necessário para o supérfluo era denominado
otium e contrastava com o tipo de tempo próprio dos escravos, o nec-otium. O nec-otium consistia no lado prosaico da vida e daí deve ter derivado o nosso vocábulo negócio, que carrega consigo, é forçoso reconhecer, o estigma que os pedantes levam àqueles cuja atividade, nos dias de hoje, consiste em "ganhar o pão de cada dia", especialmente os empresários, os chamados homens de negócios.
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A história do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, especialmente a partir do século XVI, nos mostra que eles devem muito aos interesses do comércio mundial e das atividades bélicas. Mas o fato é que ele proporcionou a fantástica revolução da qual resultou a nossa civilização atual; e parece ter fundamento a idéia de Ortega y Gasset a respeito do papel da tecnologia como gerador de tempo e condições para o supérfluo.
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A conquista pelo homem, então, de condições para fazer não o prosaico, mas aquilo que a juízo de cada um é o necessano, o prazeroso, o interessante, o importante, significou, na realidade, a ampliação da sua liberdade para forjar a sua própria vida, de acordo com as suas características pessoais. O homem conseguiu, através da tecnologia, diminuir a coerção das forças da natureza sobre a sua capacidade de viver a "sua" vida, e o processo não parece haver terminado ainda. É um contra-senso, por conseguinte, que um grupo de burocratas venha subtrair-lhe, através de arrogante e grotesca tutela, parte dos frutos dessa extraordinária conquista, dizendo-lhe o que pode e o que não pode consumir, e que equivale a ditar-lhe a forma de viver.
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Não devo alongar-me muito mais nestes comentários a respeito dos assuntos incluídos no nosso quadro. Farei, portanto, apenas algumas rápidas observações sobre os temas restantes.
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Nas sociedades não-liberais, é próprio da ordem vigente a submissão dos indivíduos aos interesses do Estado e, em contrapartida, o pleno uso do poder coercitivo do Estado sobre os membros da comunidade, um tipo de relação que implica o controle da Nação pelo Estado. Esse tipo de organização se assemelha funcionalmente aos sistemas mecânicos, como o mecanismo de um relógio, por exemplo. Imperam a coerção e a regra da autoridade.
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Nas sociedades liberais, predomina a autoridade das regras e a submissão do Estado aos indivíduos, o que leva ao controle do Estado pela Nação. É o mais complexo e sofisticado entre os diferentes tipos de sistemas. É a organização social propriamente dita, fruto da interação livre e espontânea de seus membros no tempo, uma invenção anônima, multipessoal e não deliberada.
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O assunto é auto-explicativo e, deste modo, dispensa comentários, mas comporta uma observação à guisa de conclusão: esses dois tipos extremos de organização social sintetizam o atualíssimo drama humano da escolha entre ser parte de uma sociedade de cupins ou uma peça de um mecanismo (sem vontade e propósitos pessoais) e ser parte de uma organização social de homens livres. Registro aqui a minha renovada perplexidade diante do elevado número de pessoas que não apenas escolhe a primeira alternativa, mas se empenha na conversão alheia para o mundo dos cupins!
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4 ORTEGA y GASSET, José, Meditación de la técnica, Madri. Revista dei Occidente. 1957.
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in Dois modelos extremos de organização social e política; Leme, Og Francisco – Massao Ono Editor – São Paulo, 1998
Ilustração: Family by Saul Steinberg

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