Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, de Nelida Piñon, é a primeira tentativa — involuntária, inconsciente, rudimentar — que conheço em língua portuguesa do romance não-figurativo, primeiro passo para o romance eletrônico.
É, nem podia deixar de ser, uma tentativa frustrada. Claro está que essa frustração não decorre de uma coisa que a romancista não quis fazer e provavelmente desconhece. Permanecendo na área do automatismo verbal, ficou também dentro das limitações do pensamento conceitual, dentro das limitações dos campos associativos, dos sintagmas monovalentes e monossimbólicos. Todos os seus signos são signos motivados, são onomatoremas convencionais. É uma linguagem que se mantém simbólica, sem nenhuma inovação na semântica diacrônica. A contradição que aí parece haver deriva da confusão quase geral entre símbolo e sintema.
O que não impede que Guia-Mapa seja uma experiência fascinante e que precisa ser valorizada, numa literatura que quase ainda não se desvinculou do anedótico e do regionalismo utilitarista. O livro é ilógico, desconexo e gratuito, mas são justamente essas as suas qualidades; os defeitos estão nos momentos em que a autora cai no discursivo, no "poético", no tema: aí se evidenciam os lugares-comuns e os recursos banais de sofisticação. Se Nelida Piñon tivesse ido até as últimas conseqüências, teria provavelmente escrito uma obra-prima.
Entre nós tem havido algumas boas experiências não-figurativas na prosa e na poesia, feitas pelo grupo concretista. São experiências ainda demasiado presas ao pragmatismo e à lógica. Na poesia, continuam marcando passo na apresentação de objetos conceituais, quase aforísticos. A grande dificuldade que se depara aos inovadores é que têm de reagir contra as velhas fórmulas e nessa reação automaticamente aceitam os termos de uma opção artificial. Chegam por isso a simples antifórmulas.
Há, no Brasil e no mundo, um pequeno grupo buscando criar os seus próprios cânones. Mas a criação de novos cânones pressupõe o profundo conhecimento dos velhos e pressupõe o gênio. Arma-se o impasse: ver o gênio em termos de rebelião é condicioná-lo a um dualismo incompatível com a sua condição carismática.
Pode-se escrever poesia e prosa sem palavras, sem que a obra deixe de ser criação literária, sem que perca as suas virtualidades comunicativas? Em primeiro lugar, e antes de responder, é preciso definir a palavra. Se aceitarmos a definição convencional ou uma antidefinição, estaremos fazendo o jogo dos velhos cânones. Se entendermos compreensão e comunicação como acidentes da expressão e da leitura, então a palavra é um elemento irreversivelmente petrificado. (Mas sabemos que até as pedras evoluem).
A música eletrônica respondeu que é possível escrever música sem notas, sem acordes, sem pautas, sem claves, sem instrumentos, sem harmonia e sem melodia. E música atuante, profunda, que chega aos nervos e à alma com violência, com doçura. Como sempre, a Música está à frente das outras artes, arquétipo e última Thule.
Falei há pouco em experiências na prosa. Não incluo nelas a obra dos dois maiores escritores brasileiros contemporâneos (e por certo dos maiores de toda a nossa história literária): Dalton Trevisan e Guimarães Rosa. Enquanto Guimarães Rosa, acicatado pela sua inteligência analítica e pelo seu gênio verbal, caminha para uma mundificação ultravocabular, de aglutinações estritamente unissignificantes (sem prejuízo das conotações), Dalton Trevisan retroage à mundificação pré-vocabular, onde a palavra é ela mesma e seu drama. Nem um nem outro, a rigor, fazem experiências. Descobriram seu próprio caminho e realizaram-se nele. Seguem paralelas inversas — portanto, paralelas apenas em segmentos. Podem encontrar-se, mas só num espaço não-aristotélico como o proposto por Van Vogt: um espaço sem conceito.
Reconheço que o leitor alheio à revolução eletrônica na Estética se sentirá perplexo, se me acompanhou até aqui. Não menos ficaria se lhe dissessem que hoje é tecnicamente possível executar um concerto ou interpretar uma ópera sem instrumentos e sem vozes humanas, apenas com um feixe de luz ou se o convidassem a ver as coisas de em torno — tão familiares à luz convencional — à luz estroboscópica.
A arte não-figurativa como a conhecemos agora é apenas um antifórmula da arte clássica. Só muito lentamente poderemos evoluir para o novo absoluto. Sentamo-nos com a maior confiança em uma cadeira de três pés, de dois pés e até de um pé; todavia, embora a indústria já esteja em condições de produzir cadeiras sem pés e sem assentos (campos de sustentação), ainda não existem condições psicológicas para o seu lançamento no mercado.
Pouco a pouco, no entanto, vamos aceitando idéias perigosas. Os poetas e os artistas, em seus momentos de gênio, abalam as primeiras resistências. E um dia, sem sentir a transição, compreendemos.
Isso que Nelida Piñon tentou no Guia-Mapa está em Sousândrade, o genial poeta maranhense: em parte no Guesa Errante, mas sobretudo no Novo Éden, poema da loucura, praticamente ininteligível. (Talvez o Moosbrugger de Musil o entendesse com a maior clareza.)
Na literatura francesa, Antonin Artaud aproximou-se ainda mais. O movimento dadaísta percebeu vagamente as implicações da nova verdade verbal — a verdade como variável. O romance neogótico, vinculado embora ao pragmatismo e às exigências do leitor de agora, vem tentando passos ainda mais audazes. Com escasso êxito, porque sem assunto não há leitores nem editores. E sem palavras a impressão encarece terrivelmente... Bester fez tentativas que ficaram inclusive, aquém do concretismo. Drode permanece no nouveau roman. Sturgeon, a despeito da psiótica, é ainda Gestaltpsychologie.
Resta, naturalmente, Joyce. Ou, na poesia, Ezra Pound. Mas Joyce é excessivamente figurativo e Pound excessivamente tradicionalista. Para Joyce há uma chave, como nos logogrifos, depois do que tudo se resolve numa fabulação linear e numa dição discursiva¹. O mal de Finnegans Wake, por exemplo, é que ele é um labirinto, com a lógica minuciosa dos labirintos. (Devia ser como em Simak: quando Jenkins abre uma porta, ela dá para outro universo, e não para outro aposento.)
Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo é pouco mais do que uma série de hipálages justapostas. Suas melhores soluções (e algumas são realmente boas) não se afastam do campo sintático. O leitor inconscientemente reata os cordéis e tudo volta a funcionar como nos romances convencionais. E Nelida Piñon fica sendo uma Clarice Lispector imatura, cujos pedacinhos tivessem sido misturados.
Tudo depende, é claro, do que ela fizer depois. Outros já exploraram o nonsense, o stream of consciousness, o automatismo, a immediacy. Numerosas soluções foram propostas há mais de cinqüenta anos pelo Simbolismo, na prosa e no verso. Gertrud Stein já disse que uma rosa é uma rosa é uma rosa, Guimarães Rosa desvendou o reino onde as palavras crescem como plantas, se associam e dissociam infinitamente, Também Lewis Carroll, com sua travessia do espelho, que para Lewis Padgett é "pura lógica simbólica, magnificamente organizada a partir de dados arbitrários".
Estamos vendo o mundo de hoje com olhos velhos, estamos fazendo uma literatura voltada para o passado, alimentando a Weltanschauung de um universo que não existe mais ou que pelo menos é demasiado estreito para conter a nossa realidade. Só os realizados, microfones da tradição, se assustam com o novo. Mas nenhum novo pode ser construido com as escórias ou as ruínas do velho. Como no poema de José Laurênio de Melo, é preciso dizer tudo "como se hoje fosse o primeiro dia da criação".
Seria uma pena que o livro de Nelida Piñon fosse uma aventura sem conseqüências.
1961
¹. Um ano depois escrevia Stephen Spender em The Listener ("Imagists and Realists", 18-10-1962): "Joyce invented a method for turning all experienced history and geography into an unending stream of inner consciousness expressed in idiomatic language. He had a method, but he did not really have a form". (O grifo é meu.) Conclui que melhor seria dizer que ele tem uma forma: unendingness. Pergunto: uma real unendingness ou uma garrafa de Klein, uma fita de Moebius, a porta entrada-e-saída do labirinto? Em qualquer caso, é sempre um método fechado em si mesmo utilizando uma forma contemporânea.
in Situações da Ficção Brasileira, Cunha, Fausto – Paz e Terra – Rio de Janeiro, 1970
Imagem in http://adaweb.walkerart.org/
Um comentário:
Excelente postagem que remete em circulacao o agudo Fausto Cunha, o melhor leitor do primeiro livro de Nelida Pinon.
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