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"Encerraram num círculo de incisos
Os pássaros, as mulheres e o riso
Boiões de lata, os olhos dos juízes
São faíscas num monte de lixo"
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Maiakovski
Os versos são de 1915, mas o "Hino ao Juiz" se enquadra perfeitamente com a morte de Leila. O Brasil inteiro era uma comoção só, é verdade, mas por que é que não reconheceram em Leila uma grande força quando estava viva, no lugar de julgá-la incansavelmente?
Apareceu de tudo no dia seguinte. As redações dos jornais e revistas, por exemplo, usaram os caminhos mais sujos para se promoverem às suas custas. Algumas publicações que praticamente estavam falidas recorreram ao fato para livrar a sua pele. Não era consternação o seu sentimento, mas alívio por finalmente terem uma notícia que vendesse. Surgiram as "últimas entrevistas", as "derradeiras fotografias". As imagens de Leila grávida ou nua, aquelas que todo mundo condenou, agora estavam à mostra em todas as bancas, com manchetes sensacionalistas estampadas nas primeiras páginas. Um fotógrafo da Realidade voltou exultante para a revista, dizendo haver fotografado o berço de Janaína, estrategicamente colocado na janela em frente ao mar, na casa dos Diniz.
A vinda de seu corpo, obrigatoriamente cremado pelo governo da lndia, só pôde ser efetivada dez dias depois, o tempo de fazerem o reconhecimento e de liberá-lo para a volta. Talvez a cremação tenha sido melhor pra ela, que detestava velórios e enterros, rituais que achava "mórbidos". A missa de sétimo dia, porém, foi um festival de desrespeito, as câmeras de televisão procurando o melhor ângulo para o rosto do familiar mais triste. A chegada das cinzas no Cemitério São João Batista causou muito tumulto. Os milhares de pessoas presentes acabaram impedindo que a sua família se aproximasse do jazigo; as escolas de samba brigando por uma bandeira no caixão.
Janaína, antes considerada um mau-fruto-de-uma-relação-não-consagrada-pelos-laços-matrimoniais, agora era o alvo preferido para os que queriam a promoção pessoal. A emissora de TV que lhe recusou emprego por motivos morais tentava insistentemente que a família aceitasse 10 mil cruzeiros numa caderneta de poupança para lhe assegurar o futuro. Jece Valadão oferecia 10% da renda de seu filme, quando Leila é que deveria receber, por contrato, essa quantia. O Instituto Nacional de Cinema propunha ao MEC um subvencionamento para os estudos da menina...
Vieram as propostas parlamentares para nomes de rua, de galeria, de edifícios. Os mais descarados queriam obter o seu diário, achado nos destroços do avião, hoje guardado a sete chaves. Um certo padre de Curitiba, um tal de Emir Calluf, certamente carente de notícias a seu respeito, estranhou que a morte daquela que fora "meretriz e rebotalho humano" causasse tamanho interesse por parte dos órgãos de informação. Segundo ele, a morte de Leila deveria servir de exemplo para os que não seguem as normas de Deus. O representante divino não conseguiu o estrelato desejado, ninguém sabe por quê.
Até o filme que ela fora representar no Festival que lhe concedeu um prêmio póstumo, antes considerado um possível fracasso de bilheteria, foi lançado num piscar de olhos, apesar de seu diretor ter desviado verbas do filme para fazer outro, intitulado O Enterro da Cafetina...
Leila era "uma mulher solar", já dissera Domingos de Oliveira. Não combinava de maneira nenhuma com homenagens póstumas e inúteis. O Pasquim e seu pessoal conhecia e respeitava a amiga do peito. Para que fazer manchetes no jornal ou comparecer a missas que nada tinham a ver com ela?
De muito longe, o espanto pode ter sido grande, com toda aquela parafernália montada. Com cara de menina risonha deve ter repetido:
"Sou apenas Leila Diniz, qual o problema?".
in Leila Diniz; Cavalcanti, Cláudia – Brasiliense – São Paulo, 1983
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