maio 29, 2019

Pai Pai (tem uma gota de mãe)

Um sapinho no front


Uma vez no seminário, descobri tarde demais que eu caíra numa armadilha igualmente cheia de adversidades, ao me ver preso em novo contexto de opressão. Querendo escapar do ambiente massacrante da minha casa, deparei-me com um cotidiano controlado por regras severas. A vida de interno me parecia tão hostil que, de melhor aluno da classe no grupo escolar, tirei nota cinco no final do primeiro ano do ciclo ginasial, beirando a expulsão por falta de condições intelectuais para a carreira sacerdotal. Naquele seminário, estávamos longe de uma reclusão desordenada. Ao contrário, um dos problemas advinha do excesso de ordem e controle. Os superiores exerciam uma autoridade, agora em nome de Deus, que nem meu pai ousaria. Para tudo se respondia Deo gratias, pois tudo se devia à graça de Deus. Tudo era feito Ad majorem Dei gloriam, porque a glória de Deus estava acima de tudo. Em nome de Deus, uma falta considerada grave
podia motivar expulsão, num ritual que simulava a perda do paraíso. Rezávamos o terço individual, durante as filas para ir de um lugar ao outro do edifício, atendíamos obrigação permanente de fazer silêncio e rezávamos na capela várias vezes ao dia. O horário para conversa era rigidamente controlado. Havia castigos para qualquer regra quebrada do Regulamento, escrito num opúsculo que carregávamos como a Palavra Revelada do Reitor e demais superiores. O mais popular dos castigos era "ir pra parede", ou seja, ficar em pé no meio do pátio, encostado a uma parede, mantendo silêncio enquanto os colegas se divertiam, por tempo determinado à altura da falta cometida. A comunidade, com mais de cem internos, dividia-se entre dois grandes grupos: os maiores e os menores. Neste último incluíam-se os novatos ou "sapinhos", nome usado para caracterizar a hibridez dos recém-chegados, que não pertenciam mais ao mundo profano, mas ainda não partilhavam da comunidade dos eleitos para o serviço de Deus. Apesar da proibição de conversas entre as duas categorias, nos horários de recreio os veteranos de várias idades adoravam fazer gozações e humilhar os novatos, tratados como pessoas incompetentes, imprestáveis e, sobretudo, burras. Durante os horários para jogos, em especial futebol, vôlei e pingue-pongue, eu me via acuado em meio a garotos e adolescentes desconhecidos. Como "sapinho", estava sujeito ao poder sádico exercido sobre os mais fracos e diferentes, que hoje se identifica como bullying. Logo na chegada, fui batizado com o apelido, para mim incômodo e inexplicável, de "Boca Larga" - ali onde eram comuns os apelidos, muitas vezes grosseiros, relacionados a alguma característica desabonadora. Lembro de um novato que, por não primar pela beleza, recebeu a alcunha de "Chiclete de Onça". Um coleguinha de classe de pernas finas passou a ser chamado de "Sabiá" - e ninguém o conhecia pelo verdadeiro nome. Só escapava quem mostrasse qualidades viris. Por ser bom jogador de futebol, um dos menores mereceu a alcunha de "Pilé", em referência ao Pelé, recente fenômeno do futebol brasileiro. Com os veteranos, era mais comum o apelido enfatizar alguma qualidade - que podia ter conotação sexual mal disfarçada, como no caso do rapagão conhecido como "Tolere", em possível referência às suas dimensões íntimas. Antes da admissão ao seminário, entre as várias informações e solicitações enviadas à família do candidato, constava uma lista de roupas que eu deveria levar. Tudo bordado com o número 50, que me identificava. Para preparar o enxoval, minha mãe fez o melhor ao seu alcance. A partir de sacos de farinha usados, costurou as cuecas que algum dia eu iria usar. Fez o mesmo com meus calções, que eu julgava horrorosos e me deixavam envergonhado frente aos colegas mais ricos. Semanas depois de internado, em meio a novidades assustadoras, levei bronca do meu "anjo", nome dado a um veterano
designado para introduzir o novato nas regras severas da comunidade. Como eu ousava estar sem cueca? Na verdade, eu nem imaginava para que serviam as cuecas solicitadas na lista de enxoval. Candidamente, continuei usando minhas calças curtas, por cima da pele. Esperava que alguém me avisasse quando deveria começar, já que nada me parecia marcar a passagem para o "tempo das cuecas"..

Pai, Pai – João Silvério Trevisan – 1ª edição – Rio de Janeiro; Alfaguara. 2017

JOÃO SILVÉRIO TREVISAN tem treze livros publicados, entre ensaios, romances e contos. É autor do romance Ana em Veneza e do ensaio Devassos no Paraíso, entre outros. Realizou também trabalhos como roteirista e diretor de cinema, dramaturgo, tradutor e jornalista. Dirigiu o longa-metragem cult Orgia ou O homem que deu cria (1970), proibido pela ditadura durante mais de dez anos, e o curta Contestação (1969), realizado clandestinamente. Desde 1987, coordena oficinas de criação literária, pelas quais já passou mais de uma geração de novos escritores. Recebeu três vezes o prêmio Jabuti e o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), o último deles pelo seu mais recente romance, Rei do cheiro (Record, 2009). Sua obra já foi traduzida para o inglês, alemão, espanhol, italiano, polonês e húngaro. Ativista na área de direitos humanos, fundou em 1978 o Somos, primeiro Grupo de Liberação Homossexual do Brasil, e ainda na década de 1970 foi um dos editores fundadores do mensário Lampião da Esquina, o primeiro jornal voltado para a comunidade homossexual brasileira. Viveu em Berkeley, na Cidade do México e em Munique. Atualmente reside na cidade de São Paulo.


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