Um
sapinho no front
Uma
vez no seminário, descobri tarde demais que eu caíra numa armadilha
igualmente cheia de adversidades, ao me ver preso em novo contexto de
opressão. Querendo escapar do ambiente massacrante da minha casa,
deparei-me com um cotidiano controlado por regras severas. A vida de
interno me parecia tão hostil que, de melhor aluno da classe no
grupo escolar, tirei nota cinco no final do primeiro ano do ciclo
ginasial, beirando a expulsão por falta de condições intelectuais
para a carreira sacerdotal. Naquele seminário, estávamos longe de
uma reclusão desordenada. Ao contrário, um dos problemas advinha do
excesso de ordem e controle. Os superiores exerciam uma autoridade,
agora em nome de Deus, que nem meu pai ousaria. Para tudo se
respondia Deo gratias, pois tudo se devia à graça de Deus. Tudo era
feito Ad majorem Dei gloriam, porque a glória de Deus estava acima
de tudo. Em nome de Deus, uma falta considerada grave
podia
motivar expulsão, num ritual que simulava a perda do paraíso.
Rezávamos o terço individual, durante as filas para ir de um lugar
ao outro do edifício, atendíamos obrigação permanente de fazer
silêncio e rezávamos na capela várias vezes ao dia. O horário
para conversa era rigidamente controlado. Havia castigos para
qualquer regra quebrada do Regulamento, escrito num opúsculo que
carregávamos como a Palavra Revelada do Reitor e demais superiores.
O mais popular dos castigos era "ir pra parede", ou seja,
ficar em pé no meio do pátio, encostado a uma parede, mantendo
silêncio enquanto os colegas se divertiam, por tempo determinado à
altura da falta cometida. A comunidade, com mais de cem internos,
dividia-se entre dois grandes grupos: os maiores e os menores. Neste
último incluíam-se os novatos ou "sapinhos", nome usado
para caracterizar a hibridez dos recém-chegados, que não pertenciam
mais ao mundo profano, mas ainda não partilhavam da comunidade dos
eleitos para o serviço de Deus. Apesar da proibição de conversas
entre as duas categorias, nos horários de recreio os veteranos de
várias idades adoravam fazer gozações e humilhar os novatos,
tratados como pessoas incompetentes, imprestáveis e, sobretudo,
burras. Durante os horários para jogos, em especial futebol, vôlei
e pingue-pongue, eu me via acuado em meio a garotos e adolescentes
desconhecidos. Como "sapinho", estava sujeito ao poder
sádico exercido sobre os mais fracos e diferentes, que hoje se
identifica como bullying. Logo na chegada, fui batizado com o
apelido, para mim incômodo e inexplicável, de "Boca Larga"
- ali onde eram comuns os apelidos, muitas vezes grosseiros,
relacionados a alguma característica desabonadora. Lembro de um
novato que, por não primar pela beleza, recebeu a alcunha de
"Chiclete de Onça". Um coleguinha de classe de pernas
finas passou a ser chamado de "Sabiá" - e ninguém o
conhecia pelo verdadeiro nome. Só escapava quem mostrasse qualidades
viris. Por ser bom jogador de futebol, um dos menores mereceu a
alcunha de "Pilé", em referência ao Pelé, recente
fenômeno do futebol brasileiro. Com os veteranos, era mais comum o
apelido enfatizar alguma qualidade - que podia ter conotação sexual
mal disfarçada, como no caso do rapagão conhecido como "Tolere",
em possível referência às suas dimensões íntimas. Antes da
admissão ao seminário, entre as várias informações e
solicitações enviadas à família do candidato, constava uma lista
de roupas que eu deveria levar. Tudo bordado com o número 50, que me
identificava. Para preparar o enxoval, minha mãe fez o melhor ao seu
alcance. A partir de sacos de farinha usados, costurou as cuecas que
algum dia eu iria usar. Fez o mesmo com meus calções, que eu
julgava horrorosos e me deixavam envergonhado frente aos colegas mais
ricos. Semanas depois de internado, em meio a novidades assustadoras,
levei bronca do meu "anjo", nome dado a um veterano
designado
para introduzir o novato nas regras severas da comunidade. Como eu
ousava estar sem cueca? Na verdade, eu nem imaginava para que serviam
as cuecas solicitadas na lista de enxoval. Candidamente, continuei
usando minhas calças curtas, por cima da pele. Esperava que alguém
me avisasse quando deveria começar, já que nada me parecia marcar a
passagem para o "tempo das cuecas"..
Pai,
Pai
– João Silvério Trevisan – 1ª edição – Rio de Janeiro;
Alfaguara. 2017
JOÃO
SILVÉRIO TREVISAN tem treze livros publicados, entre ensaios,
romances e contos. É autor do romance Ana
em Veneza e do ensaio Devassos
no Paraíso, entre outros.
Realizou também trabalhos como roteirista e diretor de cinema,
dramaturgo, tradutor e jornalista. Dirigiu o longa-metragem cult
Orgia ou O homem que deu cria
(1970), proibido pela ditadura durante mais de dez anos, e o curta
Contestação
(1969), realizado clandestinamente. Desde 1987, coordena oficinas de
criação literária, pelas quais já passou mais de uma geração de
novos escritores. Recebeu três vezes o prêmio Jabuti e o prêmio da
Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), o último deles
pelo seu mais recente romance, Rei
do cheiro (Record, 2009). Sua
obra já foi traduzida para o inglês, alemão, espanhol, italiano,
polonês e húngaro. Ativista na área de direitos humanos, fundou em
1978 o Somos,
primeiro Grupo de Liberação Homossexual do Brasil, e ainda na
década de 1970 foi um dos editores fundadores do mensário Lampião
da Esquina, o primeiro jornal
voltado para a comunidade homossexual brasileira. Viveu em Berkeley,
na Cidade do México e em Munique. Atualmente reside na cidade de São
Paulo.
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