março 03, 2007

As máscaras

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BEIJO DE ARLEQUIM

I

O crescente scintilla com uma cimitarra.
Lirios longos, como grandes mãos, brancas tendidas para o luar, bracejam nas pontas das hastes. Uma balaustrada. Uma bandurra. Um Arlequim. Um Pierrot. E, sobre as mascaras e os lirios, a volupia da noite, cheia de arrepio e de aromas.



ARLEQUIM diz:

Foi assim; deslumbrava a fidalga belleza
da turba, nos salões da Senhora Duqueza.
Um cravo, em tom menor, numa voz quasi humana,
tecia o madrigal de uma antiga pavana.
Eu descera ao jardim. Cheirava a heliotrópio
e vi, como quem vê num vago sonho de opio,
uma loira mulher...



PIERROT

Loira ?


ARLEQUIM

Corno as espigas...
Como os raios de sol e as moedas antigas...
Notei-lhe, sob o luar, a cabelleira crespa,
a anca em forma de lyra e a cintura de vespa,
um cravo no listão que o seio lhe bifurca,
pésinhos de mousmés, olhos grandes, de turca...
A bocca, onde o sorriso era como uma abelha,
rescendia tal qual uma rosa vermelha.



PIERROT

Falaste-lhe ?


ARLEQUIM

Falei...


PIERROT

E a voz ?


ARLEQUIM

Vaga e fugace.
Tinha a voz de uma flor, se acaso a flor falasse...



PIERROT

E depois ?


ARLEQUIM

Eu fiquei, sob a noite estrellada,
decidido a ousar tudo e não ousando nada...
Vinha della, pelo ar, espiritualizado
numa onda de volupia, um cheiro de peccado...
Tinha a fascinação satanica, envolvente,
que tem por um batrachio o olhar d'uma serpente
e fiquei, mudo e só, deslumbrado e tristonho,
sentindo que era real o que eu julgava um sonho !

Em redor o jardim rescendia.
Umas poucas
tulipas côr de sangue, abertas como boccas,
pela voz do perfume insinuavam perfidias...

Tremia de pudor a carne das orchideas...

Os lirios senhoriaes, esbeltos como galgos,
abriam para o ceu cinco dedos fidalgos
fugindo á mão floral do calix longo e fino.
Um repuxo cantava assim como um violino
e, orchestrando pelo ar as harmonias rotas,
desmanchava-se em sons, ao desfazer-se em gotas !
Entre a noite e a mulher, eu tremulo hesitava,
se a noite seduzia, a mulher deslumbrava!

Dei uns passos...
Ao ruido agitou-se assustada.

Viu-me...



PIERROT

E ella que fez ?


ARLEQUIM

Deu uma gargalhada.


PIERROT

Porque ?


ARLEQUIM

Sei lá ! Mulher... Talvez porque ella achasse
ridiculo Arlequim com ar de Lovelace...
Aconcheguei-me mais: "Deus a guarde, Senhora !"
"– Obrigada. Quem és !"
"– Um Arlequim que a adora !"

Vinha do seio della, entre a renda e a missanga,
um cheiro de mulher e um cheiro de kananga.
Eram os olhos seus, sob a fronte alva e breve,
como dois astros de ouro a arder num ceu de neve.
Mordia, por não rir, o labio humido e langue,
vermelho como um corte inda vertendo sangue...
E falei-lhe de amor...



PIERROT

E ella ?


ARLEQUIM

Ficou calada...
Meu amor disse tudo, ella não disse nada,
mas ouviu, com prazer, a phrase que renova
no amor que é sempre velho, a emoção sempre nova !



PIERROT

Que lhe disseste emfim !


ARLEQUIM

O ardor do meu desejo,
a gloria de arrancar dos seus labios um beijo,
a volupia infernal dos seus olhos devassos,
o prazer de a estreitar, nervoso, nos meus braços,
de sentir a lascivia heril dos seus meneios,
esmagar no meu peito a carne dos seus seios !



PIERROT, assustado:

Tu ousaste demais...


ARLEQUIM, cynico:

Ingênuo ! A mulher bella
adora quem lhe diz tudo o que é lindo nella.
Ousa tudo, porque todo o homem namorado,
se arrepende, afinal, de não ter tudo ousado...



PIERROT

E ella ?


ARLEQUIM

Vinha pelo ar, dos zephiros no adejo,
um perfume de amor lascivo como um beijo,
como se o mundo em flor vibrasse, quente e vivo,
no erotismo triumphal de um amor collectivo !



PIERROT, fremindo.

E ella ?


ARLEQUIM

Ansiando, ouviu toda essa paixão louca, levantou-se...


PIERROT

Depois ?


ARLEQUIM, triumphante:

Deu-me um beijo na bocca !

Um silêncio cheio de fremitos. Os lírios tremem. Pierrot olha o crescente. Arlequim dá um passo, vê a bandeira, toma-a entre as mãos nervosas e magras e tange, distrahido, as cordas que gemem.


ARLEQUIM

Linda viola.


PIERROT, alheado:

Bom som...


ARLEQUIM

Que musicaes surprezas
não encerra a mudez destas cordas retesas...


Confidencial, a Pierrot:

Olha: penso, Pierrot, que não existe em summa,
entre a viola e a mulher, differença nenhuma.
Questão de dedilhar, com certa audácia e calma,
numa... estas cordas de aço, e na outra... as
cordas d'alma !

Suavemente, exaltando-se:

O beijo da mulher ! Ó symphonia louca
da Sonata que o amor improvisa na bocca...
No contacto do labio, onde a emoção acorda,
sentir outro vibrar, como vibra uma corda...
Á vaga orchestração da phrase que sussurra
ver um corpo fremir tal qual uma bandurra...
Desfalecer ouvindo a musica que canta
no gemido de amor que morre na garganta...
Collar o labio ardente á flor de um seio lindo,
ir aos poucos subindo... ir aos poucos subindo...
até alcançar a bocca e escutar, num arquejo,
o universo parar na syncope de um beijo !
...................................................................
Eis toda a arte de amar ! Eis, Pierrot phantasista,
a suprema creação da minha alma de artista !
Comprehendes ?



PIERROT, ansiado:

E a mulher ?


ARLEQUIM, lugubremente:

A mulher ? É verdade...
Levou naquelle beijo a minha mocidade.



PIERROT

E agora ? Onde ella está ?


ARLEQUIM, ironicamente mystico:

No meu labio, no ardor
desse beijo, que é todo um romance de amor !

Seduzido pela angustia da saudade:

No temor de pedil-o e na gloria de tel-o...
No goso de proval-o e na dor de perdel-o...
No contacto desfeito e no rumor já mudo...
No prazer que passou... Nesse nada que é tudo:
o passado!... a lembrança... a saudade!... o desejo...

Balbuciando:

Um jardim... Um repuxo... Uma mulher...
Um beijo...

(Longo silencio cheio de evocação e de scismas)


PIERROT, ingenuamente:

É audaciosa demais a tua historia...


ARLEQUIM, rispido:

Emfim,
um Arlequim, Pierrot, é sempre um Arlequim.
Toda historia de amor só presta se tiver,
como ponto final, um beijo de mulher !



in As máscaras; Picchia, Menotti del – Companhia Editora Nacional – São Paulo, 1927

2 comentários:

Carolina Cristina disse...

"Toda historia de amor só presta se tiver,
como ponto final, um beijo de mulher!"... Concordo plenamente.... Rssss.... Nossa, não havia lido Menotti ainda... Muito linda essa pequena história de amor, a mulher seduzida pela noite e o amor dele por ela... Lindo!!!
Bjos...

Unknown disse...

Lindo! Um presente, obrigada.
Menotti é fantástico, conhecia apenas O Vôo. Interessante a comparação entre a viola e a mulher, o amante sendo o músico que dedilha as cordas d`alma.
Beijo da Thaïs