março 21, 2007

Uma doença social



...Ao atingir grandes massas humanas, a fome não prejudica apenas o indivíduo, mas torna doente a própria sociedade por onde se propaga. Vejamos três das mais importantes manifestações desta doença social.
...1) O rendimento escolar do faminto costuma ser pior que o do bem nutrido. Não que a criança pobre tenha um potencial intelectual inferior ao da rica. Absolutamente. Mas a fome, por um lado, e a falta de estímulo com que a criança se defronta em grande parte das famílias de baixa renda são fatores que prejudicarão sua capacidade de aprendizagem. O índice de repetência e abandono da escola é tanto maior quanto menores são as possibilidades econômicas da família.
...Ora, com isso, o país perde duplamente. Por um lado, a criança desnutrida de hoje será o trabalhador pouco qualificado de amanhã. É todo um potencial de inteligência e criatividade totalmente desperdiçado. Se é verdade que a maior riqueza de um país é seu povo, o tamanho desta riqueza depende em grande parte da capacidade deste povo. Neste sentido, não há dúvida de que é impossível construir uma grande nação sobre a base de uma massa faminta, pouco instruída e pronta apenas a ser pau-pra-toda-obra.
...2) Além disso, é preciso lembrar que o trabalhador pouco qualificado é em geral mal remunerado. E quanto pior é a remuneração da base da sociedade, da grande massa, menor tende a ser seu mercado interno, o que limita imensamente suas possibilidades de desenvolvimento econômico.
...3) Evidentemente, o custo social e humano da fome é tão alto que não pode sequer ser contabilizado, salvo num aspecto: o que concerne à previdência social. Médicos da Universidade de Londrina (PR) realizaram um estudo onde comparam o custo econômico do atendimento hospitalar a desnutridos com o custo daquilo que seria uma dieta equilibrada para estas crianças. Conclusão: o que foi gasto no atendimento a 81 crianças em estágios variados de desnutrição seria suficiente para alimentar de maneira adequada nada menos que 430 crianças até a idade média em que aquelas 81 foram hospitalizadas. O gasto com atendimento hospitalar a desnutridos poderia, de maneira muito mais rentável, ser investido — em lugar da tentativa de cura sempre provisória e restrita ao tempo em que a criança permanecer no hospital — na prevenção do mal: investido em alimentação para as populações carentes.
...Mas além deste custo social e econômico da fome, é preciso citar também o seu custo político. Não é à toa que a maior parte dos regimes ditatoriais no mundo existem em países onde impera uma grande desigualdade social. É muito difícil a estabilização política pacífica, o respeito por determinadas instituições como a propriedade, por exemplo, num ambiente marcado pelo contraste entre a opulência e a miséria. Os saques que surpreenderam a cidade de São Paulo logo no início do primeiro governo eleito após o Golpe de 1964, em abril de 1983, são um bom exemplo do foco permanente de instabilidade política representado pela fome massiva.
...A desnutrição, quando atinge um certo ponto, faz aflorar no homem seus instintos mais destrutivos (e que paradoxalmente são também instintos de sobrevivência) diante dos quais só há duas possibilidades: a satisfação de suas necessidades ou a repressão sistemática, a montagem de um corpo armado, capaz de defender os que têm contra os que não têm. Neste sentido, e esta é uma questão que nos interessa de perto, todo o esforço de construção de uma estrutura institucional capaz de auxiliar um processo democrático em nosso país terá pés de barro, desde que não seja rapidamente eliminado o flagelo da fome. Mais quais são, na verdade, as dimensões deste flagelo entre nós? É o que examinaremos no próximo capítulo.

in O que é fome; Abramovay, Ricardo – Brasiliense – São Paulo, 1986 – Ilustração: Botero, Fernando; La siesta – Oliu su tela; 130x115 – 2000

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