março 06, 2007

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19. "Porta no fundo... Mobilia no gosto antigo", p. 43. Em Português prefere-se "a"; no Brasil prefere-se "em", mesmo com verbes de movimento. Há no drama vários outros casos do emprêgo da preposição "em" por "a".

20. "Inhozinho", p. 43. Tratamento dado pelos escravos ao sinhô moço, ao filho do sinhô velho, bem como aos rapazes em geral (também nhonhô, nhozinho, sinhozinho). Nhozinho era como ao poeta chamava a escrava Ana, sua "mamã" ou mãe preta, que lhe serviu de pagem desde a idade de um ano, e à qual dedica uma sentida página Afonso Schmidt, na "Vida de Paulo Eiró". As pessoas da família tratavam Eiró por Paulinho. Na p. 26 encontramos nhanhã, e na p. 97, sinhá, alterações de senhora, como nhozinho e variantes o são de senhorzinho, e nhonhô, de senhor.

21. "Estou do meio dia para a tarde", p. 43. "Estar do meio dia para a tarde" – estar envelhecendo.

22. Fórmulas de tratamento (vossuncê, mecê), p. 43. Além dessas duas, são usadas em São Paulo outras muitas formas contratas de vossa mercê, como vossê, grafia adotada por Elró e que alguns filólogos, como João Ribeiro ("Seleta Clássica", 1910, p. 202), consideram preferível. As personagens do drama tratam os interlocutores; conforme a condição de uns e outros, por tu, por vós, e pela 3ª pessoa (vossuncê, mecê, vossê, etc.). A forma mecê, que geralmente se supõe usada em todo o estado, não a encontrâmos em alguns pontos da zona servida pela Mogiana, limítrofe de Minas. Em geral, também se julga que essa variante não tem sido usada senão no dialeto caipira, por gente inculta. Todavia, mecê (como nho, nha – ver a nota 45 –, fórmulas que correspondem a mecê) foi tratamento não só respeitoso, mas familiar e de intimidade, de uso corrente na melhor e mais culta sociedade de São Paulo, entre marido e mulher, entre irmãos e demais parentes, e não raro até de pais para filhos. Dêsse uso ainda havia vestigios no comêco do século. O tratamento de mecê, de tanto sabor e tão caro aos paulistas de tradição, era o dispensado por Pedro I, que provavelmente o aprendeu na convivência com a marquesa de Santos, não apenas a ela (Alberto Rangel – "D. Pedro I e a Marquesa de Santos", 1916, p. 53) como às pessoas da família dela (p. 353). Vós é considerado o tratamento sempre usado entre os paulistas antigos. Mas de uma tia-avó, irmã do poeta, falecida há quase três decênios com cêrca de 90 anos, ouvimos, com muita coisa interessante do seu tempo de moça, que os filhos tratavam os pais não por vós, mas por "o senhor" e pelas formas respeitosas alteradas de vossa mercê. Os pais, êstes sim, tratavam os filhos por vós e tambêm por você. Ouçamos, a propósito, Ribeiro de Vasconcelos ("Gramática Histórica", 1ª ed., p. 211): "a cada passo encontramos, nos velhos escritos portuguêses, os pais a tratarem os filhos por vós, e do mesmo modo os superiores... a tratarem os inferiores". Nota ainda Ribeiro de Vasconcelos ter sido em consequência do uso das fórmulas nós queremos, nós mandamos, pelo soberano e outras altas autoridades, nos atos oficiais, que começou a ser empregado, pelos súditos, o tratamento de vós, em correspondência com o uso, pelas autoridades, do pronome nós, tendo-se vulgarizado o tratamento de vós primeiro entre inferiores em relação ao superior, depois entre iguais e por fim mesmo de superiores para com os inferiores. O mesmo ocorreu no Brasil, na Espanha e na América espanhola. Na "Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes", do padre Manuel da Fonseca, ed. Melhoramentos, p. 205, encontra-se esta interessante informação: "se fizeram (os paulistas) notavelmente poderosos, chegando alguns a tanta soberania, que falando com os forasteiros os tratavam por vós, como se fossem escravos". Numa de suas eruditas notas a essa obra, observa Otoniel Mota que "vós foi antigamente o tratamento de respeito; tanto assim que no falar católico até nos textos bíblicos, nos quais Deus no original é tratado por tu, se muda êsse tratamento pelo de vós: "Pai nosso que estais nos céus". Em romances históricos de autores nossos, encontramos fidalgos tratados por vós, mas refere Bluteau que, tendo Martim Afonso de Sousa tratado por vós certos fidalgotes, "procuradores do Reyno", numa reunião a que presidia em nome da rainha, um dêles protestou, alegando que "eram todos homens nobres". Na Espanha de fins do século XVII, informa Arturo Capdevila, "se tutearon los más cúltos, y el vos quedó para los inferiores", de modo que "en Lima y en Mêxico la adopción dei tu fué un fenômeno de cultura y buena crianza, al passo que en lo restante de América el triunfo del voseo en las masas populares non fuê sino una imposición del general atraso" ("El Embrollado Problema Del tu y el vos", apud "El Castellano en la América", de Arturo Costa Álvarez, in "Nosotros", ag. – set, 1927, p. 201) Daniel Granada, no "Vocabulário Razonado Rioplatense", 1890, p. 86, tratando de "arcaismos de pronome y verbo" nota que, "cuando se descubrió y conquistó la América, tu era el tratamiento familiar ó doméstico, y el de vos se aplicaba á los inferiores (vasallos, criados etc.)". Hoje, no Prata, vos é tratamento familiar entre iguais, e Amado Alonso (" El Problema de la Lengua en América", Madrid, 1935, p. 125) diz que "tiene una vida exuberante en gran parte de Sud-América el tratamiento de vos". O dialeto caipira ainda conserva o uso de vosso, vossa, em correspondência com você. A interjeição uiai ou uai (olhai), largamente usada no interior, é um vestígio dêsse tratamento. Tu em São Paulo só é empregado enfaticamente, e o povo o considera injurioso. A República instituiu o tratamento por vós, nos atos oficiais, o que já não é hoje observado.

23. "Nhanhã", p. 43. tratamento dado não apenas às meninas, segundo registra Beaurepaire Rohan, mas, como no texto, a mulher de mais idade, particularmente por pessoa de condição inferior.

24. "forte novidade!", p. 44; Forte, com esse sentido, parece já não ser usado no Brasil.

25. "minha nossa Senhora", p. 44. Curioso emprêgo simultâneo dos dois números do possessivo (minha e nossa). Diz-se que as últimas palavras de Carlos Gomes foram: "Minha nossa Senhora. Ave Maria", que servem de fecho a um soneto de Silvio de Almeida ao Tonico de Campinas".

26. "virtude bem rara nos índios" (não beber), p. 45. Os índios, nas suas festas, usavam e abusavam do caium (acayu-y, água ou suco de caju, com que primitivamente era preparada a bebida); mas não se embriagavam habitualmente, como depois que se puseram em contato com os "civilizados".

27. "Êle continua a se fazer de rogado", p. 48. Em Portugal se diria: "a fazer-se rogado".

28. "O mano tratou-lhe mal hoje?", p. 49. – O emprêgo de lhe em função acusativa é corrente entre os paulistas, mesmo em gente culta e até em escritores. Na mesma p. ocorre: "Se lhe ofendi, perdoe-me. Na p. 62, vem ainda; "Mordeu-lhe a pulga". Aí o emprêgo de lhe como objeto direto contrasta com a construção da frase, de cunho bem português. Em todos êsses casos trata-se de fala de gente paulista e de condicão modesta. Veja-se a nota 61 (êle, complemento objetivo).

29. "Samburá", p. 50. Vocábulo tupi, de que já fala Gabriel Soares ("Tratado Descritivo do Brasil em 1587", ed. de 1879, p. 268), que também escreve samurá. O uso generalizado do têrmo em todo o país, atesta à antiguidade da sua adoção pelos portuguêses.

30. "Meu rico Vitorino", p. 52. Acreditamos que rico, com o sentido com que é aí empregado, já não seja usado no Brasil.

31. Fórmulas de tratamento (3.a pessoa, vós e tu), p. 56. Aires, filho de um fidalgo, dirigindo-se a uma moça, trata-a primeiro pela 3ª pessoa (p. 40), e, à medida que se estabelece intimidade entre êles, por vós (p. 56), e finalmente por tu (p. 57), o que parece mostrar uma certa gradação de sentido nas fórmulas de tratamento em uso na época.

32. "Igreja dos Remédios", p. 56. A igreja, que mais tarde se chamou de Nossa Senhora dos Remédios, e há poucos anos demolida, foi fundada como capela em 1724, sob a invocação de S. Vicente, pelo famigerado Sebastião Fernandes do Rego, em cumprimento de voto feito uma das vezes em que estêve na cadeia pelas muitas falcatruas que praticou. Rego denunciou os irmãos Leme, dos quais se fingia amigo, e que traiu e fêz prender, para se apoderar do "grande cabedal de arrobas de ouro" que aquêles paulistas tinham em suas mãos (os irmãos Leme, diz Nuto SantAnna, "deixaram traços de aventura fulgurante, que tem qualquer coisa de épico"). Leia-se o romance de Paulo Setúbal – "Os Irmãos Leme". Outra célebre proeza de Rego foi ter remetido para Lisboa, em cofres rigorosamente fechados e lacrados com o sêlo real, sete arrobas de ouro, produto do quinto de Cuiabá. Na presença do rei, d. João V, e da côrte, solenemente convocada para a cerimônia, foram abertos os cofres e dêles retiradas... barras de chumbo. Nos últimos anos do Império, a igreja dos Remédios tornou-se ponto de reunião dos "caifases", para propaganda abolicionista, chefiada por Antônio Bento.


in Sangue limpo; Eiró, Paulo; Notícias biográficas e notas de José A. Gonsalves – Separata da Revista do Arquivo Municipal nº CXIX – São Paulo, 1949 – Foto: Observatório de São Paulo, situado à Avenida Paulista n. 69.

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