março 08, 2007
Rósea luz
IV – OS RISCOS DA POSTURA FREUDIANA PERANTE A MÍSTICA:
O ESTATUTO IMPOSSÍVEL DO OCEÂNICO
...A relação de Freud com a mística não se esgota totalmente em sua recusa do modo de conhecimento e seu diagnóstico do tipo de experiência que a mística constitui. Há ainda um contexto, mais global e ao mesmo tempo mais pessoal, em que Freud se posiciona em relação ao fato místico. Esse ponto de vista nos permitirá, então, captar a maneira como Freud compreende a mística, o que anima, em profundidade, sua postura perante ela.
...Aludimos, aqui, aos textos onde Freud se posiciona, em termos aliás bastante nítidos, em relação à Mística: agora, não se trata mais de recusar ou diagnosticar, mas de avaliar. Nesses "julgamentos", Freud pode adotar um tom categórico, não obstante simule apresentá-los inocentemente, como um traço idiossincrático, atrás do qual se escondem, na verdade, opções precisas no que concerne à sua Weltanschauung. Convém sublinhá-las para concluir a caracterização de sua relação com a mística (através de seu relato objetivo e para além deste).
...O documento capital aqui é o famoso começo de O mal-estar na civilização, que se refere diretamente à atitude mística. Cabe observar que os discursos de Freud sobre a religião e sobre a mística não intervêm no mesmo nível. É conhecido o diagnóstico freudiano da religião como função social causadora de ilusão. A avaliação da atitude mística aparece num outro plano, o do sentimento oceânico. Na mesma medida que a religião pode ser concebida como uma determinação "ilusionante" ligada à própria natureza da Kultur, coloca-se a necessidade de saber se o sentimento oceânico existe como determinação. Privando-o dessa pretensão, Freud afasta a religião para o lado das necessidades advindas do estado infantil de dependência absoluta, e o gozo místico, para o lado de uma estratégia individual, logo, de uma determinação que se sofre ou não.
...Qual é o sentido da insistência de Freud em subjetivar o sentimento oceânico, senão o de conservar para a religião uma espécie de objetividade de sua alienação, enraizada na necessidade de dependência e proteção, remetendo o sentimento (Gefühl) do qual se nutre a mística à condição de tentativa de restabelecimento do narcisismo ilimitado? Assim, se a religião é uma necessidade (alienante mas efetiva), a atitude mística é uma tensão nostálgica, qualquer coisa como uma Sehnsucht narcísica. Portanto, na mesma medida em que Freud se sente capaz de explicar a ilusão religiosa, declara sua inexperiência no que se refere às nuvens (Nebel), tanto lhe é embaraçoso trabalhar esse Todo a custo concebível, "com o qual nos faria fundir o pseudo-sentimento oceânico". Assim, nada de experiência fusional para Freud, que se exclui daqueles que, como diz o poeta, regozijam-se respirando na rósea luz. "Felizes os que têm a experiência das nuvens!", declara a ironia freudiana. E de uma verdadeira "anestesia" que está falando então.
in Religião e sociedade: Freud e a mística; Asoun, Paul Laurent – Campus – Rio de Janeiro, 1984 – Ilustração: William Blake in Satan Smiting Job with Sore Boils
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