fevereiro 13, 2007

Análise da conjuntura

Ele pediu minha opinião. Parece que é pra botar nessa coisa que ele anda batucando sem parar. E como não sou de negacear, vou ditando pra ele batucar os ditados.
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Considerando bem, não estou entendendo nada. Antigamente era lá em casa, agora é aqui em casa. E bem antes era acolá em casa, donde lembro bem pouco, que minha memória é curta se não for no faro. No entanto...
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Lá em casa era bem diferente. Eu tava super bem lá. Apesar que eu odiava o chão liso, e até cheguei a ficar conhecido como cachorro voador, pois tinha de pular da poltrona prô sofá, causa de que eu sofria muito pra pegar garra naquele carpete de madeira. Por isso voava. E lá tinha ela, que não sei porque sumiu aqui de casa.
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Os passeios por lá, pra confessar direitinho, eram meio que um pé no saco. A rua, a tal de Pereira, era só carro pra todo lado, zunindo e roncando. E era cheia de gente, uma molecada na saída do colégio .... nenhuma privacidade pra fazer minhas necessidades mais sólidas. Imagine um inglês como eu, nascido no condado de Paracambi, a vergonha que passava. Tinha também a tal Rua Umari, pra onde eu sempre acabava indo depois da toalete. Uma quadra, sem saída, mas sem carros, nem multidões. Eu ia e vinha naquela quadra pequena, que nem ioiô, um tédio mortal. E sempre na coleira, até na Rua Umari. Saía para passear e garrava lembrar de acolá em casa, das ruas do Leblon, tão mansinhas que dava gosto andarilhar.
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Mas lá em casa, apesar do chão maldito e dos passeios sem graça, era bem bom. Tinha ele e ela, e a Maria, que era minha amigona. Eu, que sou muito macho, apesar desse nome de menina que me deram, me agarrava nela. Até rosnava, mais teatro que ferocidade, quando, eu na cama com ela, ele se chegava prô nosso lado. Pois se ele tinha seu próprio lado na cama, porque perturbar a gente, quietinhos no nosso lado. Eu e ela, agarradinho e atento.
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Um dia, de repente, fiz as malas e, pensei, vim ver meus primos no interior. Mas quando menos percebi, tava saindo da casa dos primos e vim pra cá, aqui pra casa. Que no começo, nem sabia que era aqui em casa. Não tava entendendo nada.
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Fiquei meio tonto no início, que nós caninos somos meio lerdos com essas coisas de mudanças. Reconhecia o sofá, que o bobão do Zé Mane meio que destruíra lá em casa, a cama era a mesma, e as mesmas eram as bobagens que ele via na tal de TV (tempo em que aproveito e ronco no sofá, que besteira de televisão é dose pra cachorro). Mas o resto tudo era outra coisa. O chão, obrigado my Dog, um carpete, que ele diz vagabundo, mas que eu adoro. Me dá firmeza nas patas. Por outro lado, onde o corredor imenso que me levava prô quarto lá em casa? Cadê Maria? E, sendo o lugar bem pequeno, onde ele escondeu ela?
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Me inquietei mudo, que não sou de latidos inconseqüentes. Zonzei, principalmente de noitão, sem conseguir entender os espaços. Por sorte, e muita inteligência minha, marquei logo o ponto fundamental onde, naquela topografia esquisita, repousavam minha água e meu ragú. E fui me calando, achando que era por uns tempos, e que logo a gente, ele e eu, voltava lá pra casa. Toda vez que eu saía, elevador abaixo, mirava o carro e puxava forte na coleira na direção da viatura, e supunha a viagem de volta. Mas, primeiro que ele nunca ia prô carro; me levava pras ruas novas. E mesmo quando pegava o dito, era só pra me obrigar visitas familiares, me fazer agüentar os primos, duplinha difícil e meio mal educada prô meu gosto (imaginem os senhores que, até hoje, e olha que são mais idosos do que eu, não se formaram no toilet trainning fundamental; bem feito, ficam presos no quintal e nem podem usufruir das variedades de sofás que por lá abundam).
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Mas os passeios de rua, custei a confessar, eram ótimos. Parecia Sacra Família: muita grama, mato crescido, andanças longas e sem coleira. Só estranhei que ele passou a me levar muito cedinho, eu, que fui criado dorminhoco por ele mesmo. Mas que era bom era. Em vez de Barão, devia mesmo era se chamar Sacrão.
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Hoje já não sei mais. To começando achar que pra lá não volto. E, tenho até vergonha de dizer, nem sei se ligo muito. Aqui em casa tá bom pra cachorro, principalmente a passeação.
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Ele é que anda esquisito, nem parece o mesmo. Acorda cedo, anda que nem doido, fica no sol meio largado (eu, que sou inglês, fujo pra sombra e fico só vendo). Além disso, voltou a me levar pros botequins, mesmo sabendo que não bebo e odeio conversa fiada. Escreve o tempo todo, meio amalucado. Acho que alucinou. (ainda bem que de manhã me deixa em paz em meus jardins). De noite, nem fica mais em frente à TV, vive grudado no computador, martelando essa coisa cheia de letrinhas onde ele agora martela meu ditado (eu lato em bom português, mas não confio na catação de milho dele, nem na sua gramática, ´nda mais esquisito do jeito que tá). E eu que me vire no chão, pois por ali, no quarto onde dorme o computador, sofá não há (ele me prometeu que haverá, mas não me fio muito em sua palavra). Ainda bem que a minha cama é a mesma. E, sem ela, me sobrou bem mais espaço. Mas gostava do agarradinho, e com ele não tem graça, macho com macho, vira esculacho.
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Com tudo isso, vou me acostumando, que sou cachorro, e não burro, esses sim dados a teimosias e empacamentos. Adoro meus jardins, minhas promenades, me agarro feliz à aspereza do carpete, e até da Marta já estou quase fazendo Maria. Cachorro é assim mesmo, volúvel, volúvel.
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Mas ele, repito e insisto, tá muito esquisito, apesar de ter horas que até acho que ele tá gostando de ser esquisito, e sorri muito e me faz muito cafuné, coisa que me delicia muito. Ele não era tão assim lá em casa. Vai ver gente louca é uma coisa boa pra cachorro. Quilo Sá, Vardemá?, como dizia o Zé Mane, Rei dos Brejos de Sacra Família do Tinguá, e terror das preás que ousam invadir os seus domínios.
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Aliás, tô meio que puto com o Zé Mane. Cachorro metido a besta, meu! Esse tempo todo e nem uma notícia. Deve ta lá comendo preás e cadelas, o semvergonhoso. E eu aqui, quebrando o galho no pé dele, que nunca me deixa chegar nos finalmente. Só não digo que o Zé é que é feliz, assim com inveja, porque não fui feito pra vida na roça. To viciadão em gente perto, cama macia, cafuné, e essas coisas todas que só na cidade tem (lá, no reino do Zé, nem na cama eles me deixavam subir, pode? Mas no sofá eu deitava, rolava e roncava, mesmo tendo de dividir o espaço com o grandalhão do Zé).
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Falei no Zé e me lembrei do Francisquinho, por quem sempre nutri uma intolerância estridente, mas que agora já não me lembro porque. Porque, na verdade mais doída, sinto falta dele também. Ele adorava ficar na varanda em falação com eles, assim que a noite caía e ele largava as enxadas e carpideiras. Era um filósofo popular; entendia de tudo e de tudo dava conta: de gente, das boas e das outras que nunca conheci: dos bichos (lembro quando ele matou a cobra,cabra macho pra cachorro - ela até inspirou-se e escreveu uma coisa de muita boniteza que vou pedir pra ele mostrar pra vocês). Mas Francisquinho entendia mesmo era das plantas e dos matos, das árvores e da grama. Só a braquiara derrotava ele. Pensando bem, eu gostava do Francisquinho; tinha era ciúme dele com eles. O Zé amava ele e eles. O Zé é um sábio, por isso sua realeza é tão reconhecida nos brejos do lugar. O Zé deve ta lá na casa do seu Alvino, brincando com o Criolo e caçando preá. Será que ele lembra de mim?
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Ele não esquece do Zé. Tem até retrato dele na parede, colado pertinho dum meu, de quando eu era cachorrinho e todo mundo me achava lindinho. Às vezes, e ele pensa que eu não percebo, ele olha pro Zé no retrato e fica todo assim, assim. E sei que não é só por causa do Zé, pois ele já me disse que o Zé ta feliz é lá nos reinos dele, tomando banho no brejo, correndo livre pela quela infiniteza de terrenos. Mas que ele fica meio assim, assim, lá isso ele fica. Deve ser coisa que cachorro não entende, mas acho que tem que ver com a Sacra Família que a gente não vai mais, com o sumiço dela, sei lá. Eu, todo dia faço de conta que a grama daqui é a grama de lá, que, como lá, aqui sou meio sem coleira. E faço de conta. Até tem mais grama aqui. Sacrão e pronto.
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Sei lá. Lá tinha rua chata, mas as vezes tinha o Zé e Sacra. Aqui tem grama todo dia, mas sinto falta de minha turma: Maria, Francisquinho (dou a pata à palmatória), Zé Mane, Fernando e a cachorrada, Elisa e uma coisinha chamada Miguel que eles enchiam de mimos, até de Morro Azul, onde quem reinava era eu porque pro Zé, tadinho, aquilo já era cidade e ele ficava doidinho. Até do tal do Roberto eu sinto falta, pessoa de quem nem tenho muita recordação, mas que me mandava uma ração maneira, cheia de pedigree.
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Aqui em casa, to começando a achar a Marta meio Maria. E quando saio pro interior de Barão, que é logo ali virando a esquina, só conheci o Fred, com quem vou me acostumando devagar. É um cachorrão (quer dizer, maior que eu) meio besta, mas cheio de rabo abanando pro meu lado. No mais é uma cachorrada presa nas varandas gradeadas, que latem que nem doidos, bestalhões, quando eu passo altaneiro, livre do lado dele. Quem sabe, eu e ele, acabamos fazendo turma nova. Por enquanto, galopo solitário no jardim, aturo o Fred de vez em quando, e busco as sombras das árvores quando o sol me pega.
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Vou levando. Se tiver de ficar aqui em casa, fico na boa, com gosto até. Sei lá, juntando tudo, até que ta legal pra cachorro.
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Só sinto muita falta dela.
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Ditado por Pipoca, psicografado por Zédu

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