fevereiro 10, 2007

Cinema Noivo



Harpa de Verão

Carlos David

Que livro assustador! exclamará alguém, ao percorrer as primeiras páginas. Romance? Memórias? Auto-sexobiografia? Poema em prosa? As interrogações vão-se emendando ao longo do estranho cântico entoado em intenção de Jean D., jovem comunista morto nas barricadas de 19 de agosto de 1944, em Paris. A soberba prosa de Jean Genet adquire em Pompas Fúnebres a sonoridade de um órgão que registrasse voluptuosos acordes, num réquiem para o efebo sacrificado. Os planos da memória e imaginação volta e meia se confundem neste livro de assombrosa realidade, onde, no entanto, campeia libérrima a fantasia. A morte está presente em cada nota, é o leitmotif incitando o condenado à vida a que prossiga num crescendo de emoções em busca do êxtase terreno, como se isso representasse a libertação final. O ato de escrever, para Genet, é um mergulho vertiginoso em si mesmo. Tal exploração nas profundezas do ser, o narciso executa com a audácia masoquista de quem desnudasse a alma diante de um carrasco, afinal, muito amado. Os mais secretos sentimentos vêm à tona e um lirismo caótico estremecedor torna impressionante a exaltação da homossexualidade, que é o desvario de Jean Genet. A violência da sua prosa, com clarões dostoievskianos iluminando o mundo subconsciente, provoca tamanho impacto no leitor que este não terá outra escolha: ou parte para a aventura, correndo o risco de extraviar-se na diabólica expedição aos porões do "eu", ou dá sumiço de vez no livro insidioso. Jean Genet logra convencer-nos de que existe um assassino em todos nós, à espera de um revólver para acionar o gatilho, num ato de amor. O cadáver de Jean D., que o poeta Genet veste e despe com dedos ardentes e mirada ávida, é o novo tomo que há de tirar o sono a muita gente, e por onde desfilam coleantes animais de raça: les broches.

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Há rosas. E fezes. De como tais cheiros podem misturar-se sem provocar-nos repugnância, será um dos mistérios destas lúbricas Pompas Fúnebres. A obra de Jean Genet é de meter mêdo até aos pan-sexualistas mais gabolas. O cauteloso Dictionnaire de la littérature française contemporaine, manuseado por colegiais, não pôde ignorar Genet. Sartre, quando o poeta maldito não passava de um delinqüente comum, freqüentador assíduo dos calabouços, ilustre desconhecido no mundo das letras, dedicou-lhe alentada exegese: São Genet, comediante e mártir, próximo lançamento da Coleção Maldita. Mas o Nouveau Petit Larousse, embora bem fornido de contemporâneos na sua catita edição de 1968, torce o nariz a Genet, enquanto sorri indulgente à pequenina Sagan. André Bourin e Jean Rousselot, no citado Dictionnaire, no verbete correspondente, admitem que a obra de Jean. Genet, "erótica, até mesmo obscena, constantemente provocante, participa da fenomenologia contemporânea". Vão mais longe. Conferem "dimensão filosófica" ao "cinismo perfeitamente consciente" e ao "furioso exibicionismo" de Genet, colocando o autor do Diário de um Ladrão ao lado de "Sade, de Rimbaud, de Lautréamont e outros precursores da revolta espiritual". Ainda bem. Agora, silêncio e ...muito cuidado. Aí vem Jean Genet com harpa de verão:

"Palais de ma mémoire où s'enroule la mer
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Palais de ma mémoire ou s'enroule la peur
.....................................................................
Je vous offre mon chant que tire votre oeil las
Comme un fil qu'on dévide par I'oeil, et mon corps
Evidé tout entier par ce léger fil d'or
Sera fil de vos songes, réserve de piété,
Clair enregistrement pour vos harpes d'été
Bobine précieuse, ô Dieu vos appareils
Ont tant besoin d'amour..."

in Pompas fúnebres; Genet, Jean – Record – Rio de Janeiro, 1968


Un Chant d'Amour é a única película dirigida em 1950 pelo escritor francês Jean Genet. Por causa de seu conteúdo explicitamente homossexual [embora artisticamente apresentado], o filme de 26 minutos foi por muito tempo proibido e renegado também por Genet mais tarde em sua vida.
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Para assistir ao filme na internet clique no linque:
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