fevereiro 20, 2007

Hospício e Poder

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A instituição situada
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1.1 Breve história da instituição psiquiátrica no Brasil
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.....No Brasil, a instituição psiquiátrica surge no século XIX como herdeira da proposta preventivista, presente no discurso médico do século XVIII, como assinala COSTA (1). A instituição hospitalar passa a representar um dos instrumentos normatizadores das relações sociais.
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A especificidade das alterações de comportamento passa a exigir um espaço próprio e uma intervenção tecnicamente ajustada, dando origem aos hospitais psiquiátricos.
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A Psiquiatria no Brasil surgiu com a finalidade de proteger a população dos centros urbanos e não a de oferecer condições de atendimento aos loucos.
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As precárias condições de saúde e de controle da população no que diz respeito aos seus hábitos de higiene proporcionaram iniciativas higienistas, no início do Século XIX, tão logo a corte portuguesa chegou ao Brasil, refugiando-se da expansão do domínio napoleônico. A administração central providencia, a exemplo do que ocorrera nos principais centros europeus, uma política de saneamento, delegando à medicina as funções de execução de um extenso mapeamento do espaço urbano, visando o tratamento dos enfermos e, principalmente, medidas que prevenissem a transmissão das doenças. Pode-se afirmar, que o surgimento da Medicina Social coincide, no Brasil, com a preocupação da aristocracia lusitana diante das possibilidades de contágio.
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O surgimento das escolas de medicina toma-se necessidade imperiosa. Os médicos somente puderam cumprir sua missão saneadora, mediante parâmetros normativos para sua intervenção, ou, como no dizer de MACHADO, a medicina "só pode agir sobre a sociedade e controlar a saúde pública se for capaz de circunscrever o exercício da medicina a pessoas que tenham a mesma formação e uma visão unitária e coordenada da problemática da saúde" (2).
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Seguindo o mesmo raciocínio e para atender às mesmas necessidades, toma-se necessário o estabelecimento de um lugar para onde fosse possível enviar os loucos que perambulavam pelo espaço urbano, criando pânico por sua conduta inusitada. O hospício Pedro II, no Rio de Janeiro, surge em 1852 para "enclausurar a alienação e tirá-la de circulação. (3), como assinala COSTA, vindo, somente em 1908, quando passa a chamar-se Hospital Nacional dos Alienados, estruturar-se com modelos médicos mais sistematizados, reflexo da inclusão da matéria de psiquiatria na formação básica na escola de medicina.
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A instituição psiquiátrica vincula-se, desde seu início, às ordens religiosas existentes, sendo por estas administradas e sendo, também e fundamentalmente, realizado por religiosas o atendimento dos internos.
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A consolidação do papel social da medicina passa a ser expresso como discurso antagônico à hegemonia religiosa na atenção dos enfermos.
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Poder-se-ia destacar, como primeira manifestação efetiva deste embate, o relatório da Comissão de Salubridade da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, de 1830.
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GUSSI, referindo-se ao relatório, destaca o enunciado do relator Dr. José Martins da Cruz Jobim, resgatado por PAIXÃO (4): "No mesmo pavimento da Santa Casa estão os doidos, quase todos juntos em uma sala, a qual chamam xadrez, por onde passa um cano que conduz às imundices do hospital. Aqui vemos uma ordem de tarimba, sobre que dormem aqueles miseráveis, sem nada mais que algum colchão podre, algum lençol e travesseiro de aspecto hediondo; também vimos um tronco, que é o único meio de conter os furiosos, resto destes tempos bárbaros de que a medicina se envergonha hoje, quando se procurava conter os que tinham a desgraça de perder a razão com os azorragues e toda a sorte de martírios. Alguns quartos em que se metem os mais furiosos em um tronco comum, deitados no chão, onde passam os dias e as noites, debatendo-se contra o tronco do assoalho, pelo que se ferem todos, quando ainda não vem outro, que com ele esteja e que os maltrate horrivelmente com pancadas" (5).
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COSTA (6), destacando os primeiros passos da psiquiatria no Brasil, chama a atenção para a construção de uma metodologia própria, inicialmente fundamentada na escola francesa, e também para as dificuldades de delimitação de seu campo específico.
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Cabe à psiquiatria a tarefa normatizadora da vida familiar, através da depositação no louco da responsabilidade pelos eventuais transtornos nucleares. Fica sendo do psiquiatra a autoridade de discernir qual dos membros da família deverá ser excluído em nome da sanidade e bom funcionamento de todo o grupo, e o hospital psiquiátrico, a instituição executora desta função, que BIRMAN caracteriza da seguinte forma: "A disciplina é a característica ativa do asilo, o que o distingue de um mero espaço de recolhimento de pessoas, para exercer sobre elas uma prática ordenadora do comportamento. Ela é a vontade institucional, sintetizando as ações diferenciadas dos variados grupos técnicos" (7).
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A instituição psiquiátrica surge da necessidade do estabelecimento de um espaço específico para o enclausuramento destes personagens inconvenientes, uma vez que até então, eram encaminhados para os presídios ou para os hospitais gerais, dependendo do seu grau de periculosidade. O hospício surge como o lugar onde, supostamente, receberiam um tratamento adequado, ao contrário da situação anterior, como define MACHADO, "os doentes mentais que habitam o Rio de Janeiro não se beneficiavam de nenhuma assistência médica específica. Quando não eram colocados nas prisões, por vagabundagem ou perturbação da ordem pública, os loucos erravam pela rua ou eram encarcerados nas celas especiais dos hospitais gerais da Santa Casa de Misericórdia" (8).
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O hospício surge para cumprir, satisfatoriamente, duas funções complementares: protege o louco dentro de um espaço que lhe é próprio e que assume pouco a pouco as especificidades da tecnologia manicominal e, ao mesmo tempo, protege a sociedade dos loucos errantes, tão supostamente ameaçadores à segurança pública.
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A psiquiatria, centrada e encastelada em seus redutos agora específicos, passa mais eficientemente a cumprir o papel que lhe foi designado pelo Estado.
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As instituições vão sendo criadas sucessivamente, cumprindo o duplo papel de retirar do espaço público os indesejáveis, que perturbam fundamentalmente o espaço urbano, e, também, o de encontrar, experimentalmente, métodos terapêuticos próprios, ou seja, tentar "curar a loucura".
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O mesmo modelo utilizado no Rio de Janeiro, aprimorado por Juliano Moreira durante a primeira década deste século, passa a ser reproduzido nas demais unidades da federação, seguindo o critério de suas possibilidades econômicas e necessidades de crescimento, porém, sempre perseguindo o mesmo objetivo de transformar "o corpo violento em corpo pacífico" (9). O ato de encarcerar o louco é a iniciativa primordial, a partir daí, o objetivo curativo pode ou não tornar-se factível.
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(1) Ver Jurandir Freire Costa, Ordem médica e norma familiar, 1979.
(2) MACHADO, 1978:164.
(3) COSTA,1981:22.
(4) PAIXÃO, 1979:121.
(5) GUSSI, 1987:8.
(6) COSTA, 1981:22.
(7) BIRMAN,1980:25.
(8) MACHADO, 1978:377.
(9) MACHADO, 1978:445.
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in Hospício e poder; Teixeira, Mario – Centro Gráfico do Senado Federal – Brasília, 1993

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