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A UMA CAVEIRA DE BURRO
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Isto posto, aqui estamos, Januário,
lírico debutante de dezembro,
ossatura fiel, oh duro e seco
resquício de paciência e de ternura,
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mirando o que foram olhos no teu crânio,
adivinhando estradas no teu passo,
sentindo um cheiro a sol na tua orelha
onde uma rosa extinta houve, no outrora;
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e enquanto nos devolves o interesse
com que, pobres de nós, te desvendamos
e aconteces num sono sossegado
de quem já soube tudo e nada espera,
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nós, muares erguidos, intranqüilos,
pensamos surpreender a madrugada,
mas tua branca frente é que responde
à luz sentida antes de qualquer outra;
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tu, que trazes sereno no teu dorso
de quando abril surpreendeu o outono,
que deixaste teu rastro em campos largos,
mastigando capim, pausadamente,
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tu que à lua mostravas o teu vulto
de fulvo pêlo rústico e primário;
tu, de cascos de aurora e voz pungente,
Januário, sereno Januário;
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que morreste de amor contrariado
numa súbita noite voluntária
e te deitaste e foste despedindo
suavemente, de tudo à tua volta,
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e que hoje te encontras com estrelas
porque é dos burros mágicos ser puro,
e que conversas, infalivelmente,
com dois anjos lunares que te escutam.
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Assim nós te inventamos, Januário;
de bicho claro e simples, te fazemos
um ser em espirais, porque é do homem
dificultar o que ama, ou disfarçá-lo.
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O autor e sua obra
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Renata Pallottini nasceu em São Paulo, no ano de 1931. Formou-se em direito, pela Faculdade do Largo de São Francisco (e o contato com a velha Academia haveria de deixar traços muito marcados em sua obra), e em filosofia, pela Faculdade de Filosofia de São Bento, da Universidade Católica.
Muito cedo, porém, a poesia se revelou como sua maneira peculiar de colocar-se no mundo, de interpretá-lo, de comunicar-se com ele. O primeiro livro, "Acalanto" – que ela própria ajudou a compor na tipografia de seu avô –, foi lançado em 1952 e dava a conhecer não apenas uma promessa a mais no panorama literário nacional, mas um poeta inteiro que, embora jovem, tomava resolutamente seu caminho e fazia já ouvir a voz inconfundível da poesia verdadeira.
A "Acalanto" seguem-se várias obras: "Cais da serenidade" (premiado em um concurso de "A Gazeta", em 1953), "O monólogo vivo", "A casa", "Livro de sonetos" (prêmio do Pen Clube de São Paulo), "Nós, Portugal" (editado em Tavira, Portugal), "A faca e a pedra", "Os arcos da memória".
O Círculo do Livro lança agora este "Chão de palavras". Trata-se de uma antologia que pode oferecer ao leitor uma visão significativa da poesia de Renata Pallottini e dos caminhos que percorreu. São poemas em que o momento da emoção experimentada, ou o da reflexão comovida sobre a condição do homem e do mundo, é sempre captado com sutileza e comunicado com toda a força daquela síntese lírica, característica básica da poesia autêntica; poemas em que aflora a consciência moderna de que é de palavras que a poesia se faz, de que é a palavra a matéria-prima do produto poético, o chão de onde vão brotar flores e frutos de beleza, quando se abrirem as sementes que a vida vai plantando na sensibilidade do poeta.
A necessidade de uma comunicação talvez mais imediata com o mundo e as pessoas levou Renata a buscar também outras formas de dizer. E sua escolha desta vez recaiu sobre o teatro. A partir de 1965, lançou-se como autora teatral com "O crime da cabra", texto que lhe garantiu dois prêmios: o prêmio Molière e o Governador do Estado. Em 1968 recebeu o prêmio Anchieta – que, tal como o Molière, é uma das mais importantes láureas dó teatro brasileiro – com "O escorpião de Numância", uma recriação muito pessoal da tragédia de Cervantes.
Nos últimos anos tem feito, com pulso firme, incursões no terreno da narrativa – pois nada do que é literário lhe é estranho –, tendo, além de várias publicações em revista, lançado "Mate é a cor da viuvez", uma coletânea de contos.
Sempre em busca de novos caminhos e de novas linguagens para falar ao homem de seu tempo, tem escrito muita coisa para a tevê, entre as quais os textos para "Vila Sésamo", em sua primeira fase, o que contribuiu para que o programa se consolidasse, na época, como o melhor em seu gênero, na televisão brasileira. Atualmente, escreve para o Canal 4 – TV Tupi – a telenovela "O julgamento" (que deve ir para o ar em outubro deste ano).
Essa riqueza de possibilidades na criação literária, a seriedade e a importância de seu trabalho lhe valeram, em 1968, um convite para presidir a Comissão Estadual de Teatro, cargo que exerceu durante dois anos. Datam dessa época importantes montagens do teatro brasileiro, tais como "Na selva das cidades", "O balcão" e "O assalto", que contaram com o apoio daquela entidade.
Em 1969, Renata Pallottini adaptou para teatro trechos de obras de Guimarães Rosa, extraídos não só de "Sagarana" e "Corpo de baile", como da obra máxima que é "Grande sertão: veredas". A crítica elogiou merecidamente sua capacidade de levar para o palco, vivas, as personagens do grande romancista, conservando, com perfeição, as características fundamentais do universo e da linguagem rosianos, aventura a que realmente só se lançaria um escritor em plena posse de seus meios expressivos e das técnicas de seu ofício.
Já há algum tempo, Renata é professora de dramaturgia na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, tendo exercido também, por dois anos, a função de diretora da Escola de Arte Dramática, a escola de formação de atores da ECA.
Em meio a todas essas atividades, porem, a poesia permanece o chão mais rico e fecundo onde se fincam suas raízes artísticas. Todas as outras formas literárias em que se tem realizado levam a marca inconfundível do poético e se acham impregnadas dessa coisa que é, na verdade, a substância última de toda arte: poesia. Pois Renata Pallottini é fundamentalmente, visceralmente, isto: poeta.
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in Chão de Palavras; Pallottini, Renata – Círculo do Livro – São Paulo, sd
Um comentário:
é do homem dificultar o que ama, ou disfarçá-lo...
Linda tristeza esta. Terei de pesquisar esta Renata que desconhecia.
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