HISTÓRIA
DA ESPOSA DANADA
Não
sei quantos de nós haviam conseguido decifrar de uma maneira ou de
outra aquela história, sem se perder em meio a todos os cartapácios
de copas e ouros que surgiam exatamente quando desejávamos uma clara
ilustração dos fatos. A comunicabilidade do narrador era bastante
escassa, dado talvez que seu engenho fosse mais voltado para o rigor
da abstração do que para a evidência das imagens. Em suma, alguns
entre nós se deixavam distrair ou se detinham sobre certas
conjugações de cartas e não conseguiam ir além.
Por
exemplo, um de nós, um guerreiro de olhar melancólico, que se havia
apoderado de um Valete de Espadas muito parecido com ele, e de um
Seis de Paus, aproximou-os do Sete de Ouros e da
Estrela como se quisesse formar uma fila vertical por sua
conta.
Talvez
para ele, soldado perdido no bosque, aquelas cartas seguidas da
Estrela quisessem significar uma cintilação como a dos
fogosfátuos que o havia atraído para uma clareira entre as árvores,
onde lhe aparecera uma jovem de palor sidéreo que vagueava pela
noite em camisola de dormir e com os cabelos soltos, erguendo alto um
círio aceso.
Seja
como for, ele continuou impávido sua fileira vertical, baixando duas
cartas de Espadas: um Sete e uma Rainha, conjugação já de
si difícil de interpretar, mas que talvez sugerisse alguma espécie
de diálogo deste tipo:
—
Nobre cavaleiro, eu te suplico, desfaz-te de tuas armas e couraça e
permite que eu as tome! — (Na miniatura a Rainha de Espadas
enverga uma armadura completa, com braceleiras, cotoveleiras,
manoplas, sobressaindo-se como uma camisola de ferro das bordas
recamadas de suas cândidas mangas de seda.) — Estouvada,
comprometi-me com alguém cujo abraço ora abomino e que virá esta
noite reclamar-me o cumprimento da promessa! Sinto-o aproximar-se!
Armada, não deixarei que se apodere de mim! Eia, salva uma donzela
perseguida!
Que
o guerreiro tenha consentido prontamente é algo de que não se podia
duvidar. E eis que, ao vestir a armadura, a pobrezinha se transforma
em rainha de torneio, pavoneia em redor, exibe-se toda. Um sorriso de
júbilo sensual anima a palidez de sua face.
Mas
aqui de novo começava um desfile de cartapácios cuja compreensão
era um problema: um Dois de Paus (sinal de uma bifurcação,
de uma escolha?), um Oito de Ouros (algum tesouro oculto?), um
Seis de Copas (um convite amoroso?).
—
Tua cortesia merece um galardão — deve ter dito a jovem do bosque.
— Escolhe o prêmio que preferes: posso dar-te riqueza, ou então...
—
Ou então?
—
...Posso me dar a ti.
A
mão do guerreiro baixou sobre o naipe de copas: havia escolhido o
amor.
Para
a continuação da história devíamos deixar trabalhar a imaginação:
ele já estava nu, ela afrouxou a armadura que acabara de vestir e,
através das placas de bronze, nosso herói conseguiu chegar a um
seio tenro e teso e túrgido, insinuou-se entre o férreo coxote e a
tépida coxa…
De
caráter reservado e pudico, o soldado não se alongou em pormenores:
tudo o que nos soube dizer foi colocar ao lado de uma carta de Copas
uma outra de Ouros, com um ar de suspiro, como a dizer:
—
Pareceu-me entrar no Paraíso...
A
figura que depositou em seguida parecia confirmar a imagem dos
umbrais do Paraíso, mas ao mesmo tempo interrompia bruscamente a
entrega voluptuosa: era um Papa de austeras barbas brancas, como o
primeiro dos pontífices que hoje guarda as Portas do Céu.
—
Quem está a falar de Paraíso? — No alto do bosque em meio às
nuvens apareceu são Pedro trovejando em seu trono:
—
Para esta a nossa porta estará fechada por todo o sempre!
O
modo como o narrador depositou uma nova carta, com um gesto rápido,
mas mantendo-a escondida, e com a outra mão tapando os olhos, como
que nos preparava para uma revelação: a mesma com que ele se
deparou quando, baixando os olhos dos ameaçadores umbrais celestes,
pousou-os sobre a dama em cujos braços jazia e viu o gorjal
emoldurar não mais uma face de pomba no cio, não mais as narinas
maliciosas, o pequenino nariz arrebitado, mas sim uma barreira de
dentes sem gengivas nem lábios, duas fossas nasais escavadas no
osso, os pômulos macilentos de um crânio, sentindo que envolvia nos
seus os membros ressequidos de um cadáver.
A
gélida aparição do Arcano Número Treze (a legenda A Morte
não figura nem mesmo nos maços de cartas em que todos os arcanos
menores trazem escritos os seus nomes) havia reacendido em todos nós
a impaciência de conhecer o final da história. O Dez de Espadas
que vinha agora seria a barreira dos arcanjos que vedava à alma
danada o acesso ao Céu? O Cinco de Paus indicaria uma
passagem através do bosque?
Neste
ponto, a coluna de cartas se havia ligado ao Diabo, colocado
naquele ponto pelo narrador precedente.
Não
era preciso conjecturar muito para compreender que do bosque havia
saído o noivo tão temido pela defunta prometida: Belzebu em pessoa,
que, exclamando: “Não adianta, minha querida, trapacear nas
cartas! Para mim, todas as tuas armas e armaduras (Quatro de
Espadas) não valem dois vinténs (...)!”, levou-a
consigo para debaixo da terra.

ITALO
CALVINO (1923 - 85) nasceu em Santiago de Las Vegas, Cuba, e foi para
a Itália logo após o nascimento. Participou da resistência ao
fascismo durante a guerra e foi membro do Partido Comunista até
1956. Publicou sua primeira obra, A trilha dos ninhos da aranha, em
1947.
Calvino,
Italo; O castelo dos destinos cruzados – Trad. Ivo Barroso – 2ª
edição – Companhia das Letras – 1991
Imagem:
Gertrude Moakley, in her book The
Tarot Cards Painted by Bonifacio Bembo (1966)
presents
the theses that Renaissance Carnival processions depicting "Triumphs"
of morality and specific virtues, concepts also embodied in the text
and various illustrations to Petrarch's
I
Trionfi,
provide the symbolic basis of the Tarot, which originates from the
same basic milieu —
a
fusion of three traditions: the Roman triumphs, the religious
processionals, and the knightly tournament processions of the Middle
Ages. These ideas have an interesting history and visual legacy in
Western