julho 11, 2009

Os perigos da literatura



Literatura, isto é, escrever sem publicar, é uma espécie de vício secreto. Pequena perversão. Que nem colocar calcinhas de mulher. Seus praticantes estão sujeitos a muito mais. Olhai uns pares deles.

COMPLEXO DE CASTRO ALVES — Leva os poetas a delirar se imaginando numa tribuna em praça pública, cercado por um mar de povo, recebendo o brado do seu bardo, o verbo quente e a exortação para a ação.
Os poetas afetados deste mal substituem a ação pela palavra.

COMPLEXO DE MACHADO DE ASSIS — Manifesta-se em um desejo irreprimível de entrar para o Serviço Público. Levar vida reservada e tímida. Ter atitudes ambíguas sobre os problemas da comunidade. Esperar a glória, pacientemente. Alguns casos mais graves levam os pacientes a fundar academias.

COMPLEXO DE JORGE AMADO — Leva os pacientes a escrever livros e mais livros, sofregamente, uns cada vez mais parecidos com os outros. Freqüentemente, vence pelo cansaço e acorda consagrado internacionalmente. Pertence ao quadro deste complexo o sonhar com o Nobel.
Alguns têm frenesis em que se imaginam traduzidos para 18 idiomas.

MAL DE ROSA — Só faz vítimas entre membros do Corpo Diplomático.
O paciente imagina que é um jagunço do sertão.
Conta casos estranhos, numa linguagem meio antiga e meio sertaneja.
E diz em entrevistas na Europa: — Nós, no sertão...

SÍNDROME DE BORGES — O escritor-paciente imagina-se dentro de um livro, atacado por citações, vidas de outros séculos. Para o paciente afetado desta moléstia, o céu não tem estrelas.
Tem asteriscos.
Ocorre de o paciente, andando em círculos, tropeçar numa vírgula, engolir o parágrafo e bater com a cabeça num travessão.
Devem ser constantemente vigiados.
Se não melhorarem, o jeito é encaderná-los e doá-los a uma Biblioteca Pública.

MAL DE DRUMMOND — Apenas uma variante do Complexo de Machado de Assis.
O doente pode apresentar dores abdominais.
Bem na altura de Minas Gerais no mapa do Brasil. A seguir, os delírios.
O paciente grita:
— Tirem essa pedra do meio do meu caminho!

ATAQUE A JOÃO ANTONIO — Os acometidos desse mal crêem-se jogadores de sinuca, malandros da noite e velhos boêmios. Alguns tentam se parecer com Adoniran Barbosa. Quando alguém disser "literatura é um corpo-a-corpo com a vida", esteja certo: ali está alguém sofrendo do Mal de João Antônio. Vivem normalmente de uma dieta de Gorki e Lima Barreto. O melhor modo de curá-los é convidá-los para uma partida de sinuca.

PARALISIA CABRALINA — Súbito enrijecimento do nervo poético, causado por leituras intensivas da obra de João Cabral de Mello Neto. O cabra da peste acometido desse mal começa a ver tudo em quadradinhos e a só reconhecer rimas toantes. Nos casos mais graves, desenvolve pedras nos rins, na bexiga e na veia. Apresenta tendências para a litogravura, a marmoraria, ou coleciona cristais. Tem coração de pedra, e só se comove com agrestes, caatingas e canaviais pernambucanos. Normalmente, leva uma vida e morte severina.


in Ensaios e Anseios Crípticos; Leminski, Paulo – Pólo Editorial do Paraná – Curitiba, 1997

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