outubro 01, 2008

Os lobos



Sofia não era muito obediente, como já temos visto pelo que temos lido até agora. Ela já devia estar corrigida, mas ainda não estava. Foi assim que lhe aconteceram muitas outras coisas más.

No dia seguinte ao do aniversário, a sua, mãe chamou-a e disse-lhe:

— Sofia, eu tinha prometido a você que quando fizesse quatro anos passaria a acompanhar-me nos meus passeios grandes. Eu vou até à fazenda de Svitine e tenho que passar pela floresta. Você virá comigo, mas quero avisá-la que preste atenção para não ficar para trás. Você sabe que eu ando depressa, e se você parar, pode ficar bem longe sem que mesmo eu perceba isso.

Sofia encantada de dar êsse passeio enorme, prometeu que iria perto de sua mãe e que não se perderia no bosque.

Paulo que tinha chegado nesse instante perguntou se podia acompanhá-las, para grande alegria de Sofia.

Durante algum tempo, caminharam com muito juizo, sempre atrás de Mme. de Réan. Divertiam-se com os cães que corriam e pulavam. Mme. de Réan sempre os levava em sua companhia.

Quando chegaram à floresta, as crianças colhiam algumas flores que estavam no caminho, mas não paravam nem um pouquinho.

Sofia viu perto do caminho uma porção de morangos.

— Que belos morangos! exclamou ela. Que pena não podermos apanhá-los.

Mme de Réan ouviu esta exclamação e mais uma vez proibiu que parassem.

Sofia suspirou e olhou com pena para os morangos, que gostaria tanto de comer.

— Não olhe para êles e você não terá vontade de comê-los, disse Paulo.

— Não é... é que êles são tão vermelhos, tão lindos, tão maduros, que devem estar uma delícia...

— Quanto mais olhar, mais vontade terá de comê-los. É melhor não olhar. Titia nos proibiu de parar.

— Eu queria apanhar apenas um. Isto não faria com que eu me atrasasse muito. Fique comigo e comeremos juntos, disse Sofia.

— Não, respondeu Paulo, eu não quero desobedecer minha tia, e não quero ficar perdido na floresta.

— Mas, não há perigo, insistiu Sofia. Você bem sabe que é para nos pôr medo que Mamãe fala assim. Nós encontraríamos logo o caminho se ficássemos para trás.

— Não. O bosque é muito grande, e poderíamos não encontrar mais o caminho, disse o menino.

— Faça como quiser, covarde. Eu, assim que encontrar alguns morangos vou parar para comer um pouco.

— Eu não sou covarde, rebateu Paulo. Você, você é que é desobediente e gulosa. Perca-se na floresta se quiser, mas eu prefiro obedecer minha tia.

Paulo continuou a seguir Mme. de Réan, que andava depressa e sem olhar para trás. Os cães caminhavam com ela e rodeavam-na pela frente e por trás. Sofia logo enxergou outros morangos tão lindos e tentadores como os primeiros. Comeu um, que achou maravilhoso,
depois um segundo, depois um terceiro. Ficou de cócoras para colhê-los melhor e mais depressa. De vez em quando lançava uma olhadela para a mãe e Paulo que se distanciavam. Os cães estavam inquietos. Iam até a mata e voltavam. Terminaram por fazer tanto barulho
que Mme. de Réan, que observava este movimento todo, viu dois olhos brilhantes e ferozes entre as fôlhas. Ouviu ao mesmo tempo um ruído de galhos quebrados e de folhas secas. Voltando-se para recomendar que as crianças andassem na frente dela, qual não foi o seu espanto quando viu apenas Paulo.

— Onde está Sofia? exclamou.

— Ela quis ficar atrás para comer morangos, minha tia.

— Que coisa horrível! O que ela foi fazer... Estamos sendo perseguidos por lobos. Voltemos imediatamente antes que ela seja devorada por eles.

Mme. de Réan correu, seguida pelos cães e pelo pobre Paulo quase morto de terror. Dirigiram-se ao lugar onde Sofia devia ter ficado. Viram-na de longe, sentada tranquilamente no chão, a saborear os morangos. De repente, dois dos cães uivaram lugubremente e dispararam na direção de Sofia. Neste instante, um lobo enorme, de olhos faiscantes e goela escancarada deixou ver sua cabeça ameaçadora. Preparava-se para dar um bote em Sofia, mas hesitou, ao ver os cães que se aproximavam. Esta hesitação durou pouco. A fera esfomeada deu um salto enorme. Mme. de Réan e Paulo gritavam desesperadamente. Os cães avançaram latindo furiosamente. Chegaram bem no momento em que o lobo agarrava a saia de Sofia, tentando puxá-la para o mato. Travou-se uma luta feroz. O lobo, mordido pelos cães, só pensava em defender-se. A situação piorou com a chegada de mais dois lobos. Os cães portaram-se como heróis e conseguiram afugentar as feras. Cobertos de sangue, vieram lamber as mãos de Mme. de Réan e das crianças. Mme. de Réan segurou Sofia e Paulo pela mão e continuou a andar, cercada pelos valorosos cães.
Mme. de Réan não disse nada. Sofia mal podia andar, de tal modo lhe tremiam as pernas. Paulo não estava menos pálido e trêmulo.

— Vamos parar um pouco aqui, disse Mme. de Réan. Vamos beber um pouco de água fresca, pois ela nos irá acalmar

Então inclinando-se no riacho bebeu uns goles de água, e lavou as mãos e o rosto. As crianças fizeram o mesmo. Mme de Réan mandou que molhassem a cabeça na água. Sentiram-se então reanimados e passou-lhes o tremor.

Os pobres cães jogaram-se nele, beberam água e lavaram as feridas. Rolavam no riacho, e saíram dele limpos e refrescados.

Depois de um quarto de hora Mme. de Réan levantou-se para continuar o paisseio.

— Sofia, disse, agora você vê que eu tinha razão em proibir você de parar?

— Sim, Mamãe, eu peço perdão por ter desobedecido. E, você meu bom Paulo eu fui muito má de ter chamado você de covarde.

— Covarde! Você chamou-o de covarde... Pois fique sabendo que quando corremos para onde você estava, ele é que corria na frente. Acaso não viu quando os outros lobos vieram em auxílio do que estava com você, Paulo, armado com um pedaço de pau, lançou-se diante deles para que eles não passassem? Fui eu que o segurei nos meus braços, e prendi perto de você, impedindo que ele fosse socorrer os cães. Acaso também não viu que durante todo o combate Paulo ficou na sua frente para impedir que os lobos chegassem perto de nós? Assim que Paulo é um covarde...

Sofia lançou-se ao pescoço de Paulo, e beijou-o muitas vezes, dizendo-lhe:

— Obrigado, meu bom e querido Paulo, eu sempre gostarei muitíssimo de você.

Quando chegaram na casa em que deviam ir todo o mundo ficou assustado com os rostos pálidos e com o vestido de Sofia todo rasgado pelos dentes do lobo.

Mme. de Réan contou a horrorosa aventura. Todos elogiaram Paulo por ter sido obediente e corajoso. Condenaram Sofia por ter sido desobediente e gulosa, e admiraram a valentia dos cães, que foram acariciados e que tiveram um excelente jantar de ossos e de restos de carne.

No dia seguinte Mme. de Réan deu a Paulo um uniforme completo de soldado. Paulo, louco de alegria, vestiu-o imediatamente e foi ao quarto de Sofia. Ela deu um grito de susto, vendo entrar um turco com um turbante, um sabre na mão e revólveres na cintura. Paulo começou então a pular e a rir, e logo Sofia reconheceu-o achando-o muito bonito assim.

Sofia não teve mais outro castigo pela sua desobediência. Sua mãe achou que o susto que passara tinha sido suficiente.

in Os Desastres de Sofia; Segur, Condessa de – Editora do Brasil – São Paulo, 1961
Ilustração Maria Heloisa Penteado

O caçador



Herne ou Cernunnos
Hh-errm!... Hh-errm!... Hh-errm!...
A fêmea do veado chamando o macho



...Nos séculos anteriores à era cristã os conhecimentos e as lendas celtas não foram anotados pelos celtas da época porque eles não tinham escrita, a não ser o gaulês usado apenas para epitáfios curtos e outras frases gravadas em pedras. A história, a mitologia e a sabedoria dos celtas, esta aliás muito rica, foram passadas oralmente de geração em geração pelos druidas e bardos que tinham muitos anos de treino naquele método.

...O conhecimento de que dispomos daquela tradição verbal vem dos monges cristãos que a registraram. A fonte mais rica de todas é irlandesa, porque os primeiros monges irlandeses anotaram a tradição com uma fidelidade admirável. Os deuses e deusas foram abertamente transformados em heróis e heroínas da raça, mas a história de todos sobreviveu com pouco mais que um assentimento formal e ocasional às exigências cristãs, facilmente detectadas.

...Desse tipo de sagas escritas, como o Lebor gabáIa erenn (Livro da tomada da Irlanda ou Livro das invasões) e o Táin bó cuailnge (O estouro da boiada de Cooley), assim como das lendas folclóricas ligadas a santos como santa Brígida, podemos colher uma idéia razoavelmente fidedigna dos deuses e deusas da Irlanda anterior ao cristianismo.

...No que se refere às lendas galesas, temos menos sorte. A principal fonte substancial é o Mabinogion, mas, observou Matthew Arnold: "A primeira coisa que nos impressiona quando lemos o Mabinogion é a naturalidade com que o narrador de histórias medieval está saqueando uma antiguidade cujo segredo ele não possui inteiramente".

...Quanto à Inglaterra e à Escócia, não temos nem ao menos um Mabinogion: só temos folclore, o indício de artefatos como figuras talhadas na pedra, da estatuária romano-britânica, nomes de lugares e o que ficou conhecido como tradições pagãs dos celtas, saxões e outros que contribuíram para a síntese final; e no momento em que aquela síntese se estabeleceu, o controle era do cristianismo, um cristianismo do tipo romano, disciplinado, não do tipo mais livre como foi o céltico primitivo.

...Isto nos leva ao fato surpreendente de não podermos ter certeza do nome verdadeiro do deus de chifres celta. Tudo que temos é o Heme do folclore britânico e o feliz acidente de um altar gaulês isolado e parcialmente mutilado em que aquele deus aparece com o nome de Cernunnos.

...Ele existiu, disso não pode haver dúvida. Está retratado em muitos artefatos celtas, desde uma escultura talhada em pedra que se encontra no Val Carmonica (norte da Itália) e data do século IV a.C. até o famoso Caldeirão de Gundestrup, encontrado numa turfeira da Dinamarca.

...Os mais próximos a nós se encontram na cruz medieval do mercado que há no centro de Kells (condado de Meath) e alguns quilômetros mais adiante, numa pedra existente no adro do cemitério da igreja da colina de Tara (veja o Quadro 10 de O modo dos bruxos). A maior parte das pessoas provavelmente pensa que o desenho que há na cruz do mercado foi feito para indicar o Demônio, mas, tendo em vista que ele está ladeado por duas criaturas parecidas com um lobo, é óbvio que se trata do Rei dos Animais dotado de chifres; os entalhadores medievais tinham poucas inibições em relação aos objetos pagãos, o que é confirmado por tudo, desde o diabinho de Lincoln até Sheila-na-Gigs e inúmeras máscaras enfeitadas com folhagens.

...Normalmente ele é retratado com chifres e acompanhado de animais. Em geral, usa o torc (gargantilha circular) da nobreza celta no pescoço ou nos chifres. Muitas vezes, segura uma serpente de chifres ou com cabeça de carneiro, como no Caldeirão de Gundestrup.

...Se ele está tão difundido e é tão semelhante em diversas representações, por que não aparece no grande volume de lendas que dá nome a todo mundo, desde Dagda, Lugh e Dana da Irlanda até Arianrhod, Lleu Llaw Gyffes e Cerridwen de Gales?

...A explicação mais plausível é que, enquanto as divindades das lendas registradas são as de uma aristocracia de guerreiros, o Rei de Chifres dos Animais, da Natureza e da Fecundidade era primordialmente um deus das pessoas comuns. As Deusas-Mães e as deusas da Terra tendiam a ser comuns aos dois grupos, mas os deuses masculinos tinham mais espírito de classe. Os deuses dos lavradores dificilmente entrariam nas canções que os bardos cantavam para os reis guerreiros.

...Como disse Proinsias MacCana (em Mitologia celta, p. 48): "O interesse evidente da divindade pela fecundidade pode ter influenciado a forma do culto e o conteúdo do mito desse deus, e isto, por sua vez, talvez explique por que os artistas do período cristão primitivo tendiam a associá-lo a Satã, e por que só sobreviveram elementos residuais daqueles mitos. Nessas circunstâncias, provavelmente o culto de Cernunnos pode ter perdurado mais tempo nas camadas mais baixas da sociedade, onde os costumes eram conservadores e era difícil impor a ortodoxia. Infelizmente, este território é praticamente desconhecido, pois só nestes últimos tempos os usos e crenças das pessoas comuns receberam um reconhecimento consciente na literatura escrita".

...Muito razoavelmente, os estudiosos da mitologia pagã usaram como rótulo geral o nome Cernunnos, único nome do Rei de Chifres celta registrado na época contemporânea. Mas, sendo da Gália, é provável que 'Cernunnos' seja uma latinização ou uma helenização do deus celta nativo. E o fato de sobreviver no folclore britânico um deus equivalente chamado Heme sugere que o verdadeiro nome tinha a raiz H-RN ou K-RN.

...Existem outros indícios disto. Por exemplo, Conall Cernach, herói do Ulster em Táin bó fraich (O transporte do gado de Fraich) vai atacar uma fortaleza guardada por uma serpente terrível — e a serpente se submete a ele docilmente, pulando-lhe no cinto, onde normalmente é encontrada a serpente que acompanha Cernunnos. Isso não seria uma lembrança de uma história de Cernunnos? Tendo em vista que o galês irlandês é o celta camuflado, a forma esperada seria K-RN.

...Há mais K-RNs entre os santos irlandeses, figuras semilendárias que (como Bridget ou Bríd) absorveram as características de divindades pagãs de nomes semelhantes. Kieran ou Ciaran era o nome de dois santos do século V ou VI, ambos ligados a lendas de animais. São Kieran de Clonmacnoise tinha uma raposa domesticada que costumava ajudá-lo a carregar o que ele escrevia. Outros santos tinham tantos ciúmes dele que rezavam para que morresse logo; uma exceção era Columkille (Cotumba), o que é lógico, pois tinha afinidades druídicas e era um dos líderes da Guilda dos Bardos. Pouco antes de morrer, Kieran pediu que depositassem seus ossos numa colina parecida com um veado e lhe resguardassem o espírito, em vez de guardar relíquias suas. São Kieran de Saighir construiu para si uma cela de eremita com a ajuda do porco-do-mato que foi seu primeiro discípulo, ao qual logo depois acrescentou uma raposa, um texugo, um lobo e uma corça que lhe obedeciam as ordens.

...Perto de onde moramos há um 'Poço de São Kieran'; algumas pessoas ainda se lembram do antigo costume de ir ao poço no dia desse santo levando os cavalos, que recebem uma bênção ritual.

...Outro santo irlandês, chamado Cainnech, tinha uma corça que o deixava usar os chifres como suporte de livros.

...Quanto à forma H-RN, Herne, o Caçador, é uma figura do folclore britânico. A melhor lenda dele está associada ao Great Park de Windsor, onde dizem que ele aparecia nas épocas de crise nacional. Coroado com chifres de veado, ele lidera a Caçada Selvagem de cachorros de orelhas vermelhas, num passo furioso céu afora. Em Gales o chefe da Caçada Selvagem se chama Gwyn – não tão diferente.

...Uma das mais famosas figuras do império britânico é o gigante Cerne Abbas, de Dorset. Ele não tem chifres (embora talvez os tenha possuído um dia), mas tem um falo ereto que o caracteriza inquestionavelmente como deus da fertilidade; e o nome do lugar, que também é o nome do rio local, poderia ser pura coincidência? Temos nossas dúvidas.

...Na Inglaterra há muitos lugares que incorporam Herne ou Hern; entre eles está Herne Hill ('Colina de Herne'), no sul de Londres, e que costuma ter o significado de Herons Hill ('Colina do Falcão'). Mas desde quando falcões vivem em morros? Eles não gostam de pescar nos rios?

...Por fim, aqui temos um pensamento interessante de Francis De'Venney, membro de nossa sociedade de bruxos e que tem muita experiência com veados. A fêmea chama o macho com um som que vem do fundo da garganta e se parece com 'HH-ERRRN'. Será que os nossos ancestrais não teriam ouvido Herne ser chamado desse modo e pensado, com razão, que esse era o seu nome?



O ritual de Herne ou Cernunnos

...Este ritual foi concebido por Francis De'Venney e não é o de um grupo de bruxos, nem chega a ser um ritual de parceria de trabalho. É uma experiência iniciatória para um bruxo, na qual a própria Terra é a parceira no trabalho: trata-se de uma comunhão com a Deusa sem intervenção de um representante humano.

...Admitimos ser um ritual difícil de organizar por ser realizado ao ar livre, de preferência num campo natural onde seja possível acender uma fogueirinha e não haja perigo de alguém olhar ou interromper, e onde o clima seja suficientemente ameno para que os participantes possam trabalhar nus. No entanto, vale o trabalho de conseguir reunir todas estas condições.

...Escrevemos este ritual tendo em vista a simbologia celta e o veado macho, que é importante; os bruxos que seguem outras tradições podem exercitar o cérebro e os seus conhecimentos e conceber outros rituais equivalentes. Por exemplo, a Canção de Amergin, declamada no ritual, é uma peça preciosa da tradição celta. Na lenda irlandesa, Amergin foi o bardo e porta-voz dos galeses quando estes tomaram a Irlanda dos tuatha de dannan; dizem que quando os galeses aportaram, ele entoou essa canção, que é analisada em profundidade em A deusa branca, de Graves.


A preparação

...Vamos denominar Homem o bruxo que vai passar por esta experiência. Mais duas pessoas devem estar presentes como ajudantes; nenhuma será a parceira de trabalho do Homem, mas uma ou ambas têm de ser mulheres. É preciso que sejam pessoas experimentadas e sensatas, dessas que sabem prestar primeiros socorros ou ficar por perto quando alguém por acaso entrar num estado alterado de percepção consciente. Ambas ficam vestidas o tempo todo.

...O Homem deve ter se preparado para decorar a Canção de Amergin (reproduzida abaixo) até conseguir recitá-la sem hesitar. Para o ritual, o Homem deve ficar completamente nu, retirando até alguma jóia que possa estar usando, mas convém que deixe as roupas por perto para vesti-Ias depois; é bom não esquecer de deixá-las num lugar onde não fiquem muito frias.

...Acende-se uma fogueirinha, tendo o cuidado de não deixar faltar combustível para que não se apague. Os ajudantes devem preparar e ter à mão algo quente para beber, usando para isso uma chaleira ou uma garrafa térmica.

O ritual

...Os ajudantes sentam-se olhando para a fogueira e o Homem senta-se um pouco afastado, de costas para o fogo, concentrando o olhar nas sombras da escuridão.

...Falando em voz baixa, os ajudantes dirigem a ele determinadas palavras, que podem ser histórias ou canções celtas.

...Quando ele acha que está pronto, fica em pé (sempre de costas para o fogo e para os ajudantes) e declama a Canção de Amergin:

Sou um veado de sete galhos,
Sou um dilúvio solto na planície,
Sou um vento nas águas profundas,
Sou uma lágrima brilhante do Sol,
Sou um falcão num penhasco,
Sou um belo entre as flores,
Sou um deus que incendeia a cabeça com fumaça,
Sou uma lança que mantém a luta,
Sou um salmão no lago,Sou uma colina de poesia,
Sou um javali selvagem,Sou um ruído ameaçador do mar,
Sou uma onda do mar,
Quem, senão eu, conhece o segredo dos dólmenes em estado bruto?

...Quando o Homem termina, repete sete vezes a primeira linha, "Sou um veado de sete galhos", cada vez com mais força, convencendo-se de que aquela afirmação é pessoal e significa exatamente o que está dizendo.

...Finalmente o Homem senta-se, ainda de frente para o escuro, e expande a percepção consciente, cujos limites sente deslocarem-se para fora de sua pessoa.

...Os ajudantes continuam em voz baixa com as histórias e canções.

...O Homem pára de tentar identificar tudo o que está percebendo, como por exemplo os sons e odores que o rodeiam; apenas precisa distinguir o que representa perigo, segurança ou alimento. Precisa se elevar ao estado em que ainda percebe que as vozes que ouve atrás de si são vozes amigas, sem se importar com o significado das palavras nem com o fato de estar ouvindo palavras.

...Também precisa saber (e não apenas aceitar) que é um veado. Nesse estágio, deve seguir os próprios instintos.

...Os ajudantes não devem interferir, a não ser que o Homem esteja se pondo em perigo. Se o 'veado' se afastar, deve ser seguido a uma distância discreta; para isso, é preferível que um dos ajudantes tenha experiência em praticar magia em bosques.

...Quando o corpo do Homem sente frio ou desconforto e volta à consciência normal, volta-se para a fogueira e veste as roupas. Convém tomar uma bebida quente, mas não alcoólica.

...Uma sugestão final: se você acha que sentiu alguma coisa genuína com este ritual, não se apresse em comunicar isso a outras pessoas. É algo muito pessoal e a probabilidade de não ser comunicável é tão grande que qualquer tentativa de contá-lo a alguém pode distorcer o que você sentiu.



in O Deus dos Magos; Farrar, Janet e Stewart – Siciliano – São Paulo, 1993

setembro 30, 2008

Any bucks



O FOLHETO É UM REAL,
DE COMPRÁ-LO NÃO SE NEGUE.
NÃO COMPRANDO, SE ARREPENDE
PORQUE O CÃO LHE PERSEGUE
A DESGRAÇA LHE PROCURA
E A DESVENTURA LHE SEGUE.

in As Aventuras do Filho de Antonio Cobra Choca; Monteiro, Manoel – Campina Grande, PB; 2001

Un Chant d'Amour


1950, Runtime: 25 minutes

(From Wikipedia entry:
Un Chant d'Amour)

Un Chant d'Amour is French writer Jean Genet's only film, which he directed in 1950. Because of its explicit (though artistically presented) homosexual content, the 26-minute movie was long banned and was also disowned by Genet
later in his life.

The plot is
set in a French prison, where a prison guard takes voyeuristic pleasure in observing the prisoners perform masturbatory sexual acts. In two adjacent cells, there are an older Algerian-looking man and a handsome convict in his twenties. The older man is in love with the younger one, rubbing himself against the wall and sharing his cigarette smoke with his beloved through a straw.

The prison guard, apparently jealous of the prisoner's relationship, enters the older convict's cell, beats him, and makes him suck on his gun in an unmistakably
sexual fashion. But the inmate drifts off into a fantasy where he and his object of desire roam the countryside. In the final scene it becomes clear that the guard's power is no match for the intensity of attraction between the prisoners, even though their relationship is not consummated.

Genet does not use sound in his film, forcing the viewer to completely focus on closeups of
faces, armpits, and semi-erect penises. Originally produced as a porn movie of sorts, the film with its highly sexualized atmosphere has later been recognized as a formative factor for works such as the films by Andy Warhol.
 
Para assistir ao filme >>> clicaqui <<<
 

Compreensão das respostas



...O cuidado com a vaca traz boa fortuna. A docilidade e aceitação da vaca resumem a atitude que conduz à claridade. Para sermos dóceis, devemos abdicar de toda resistência ao que está acontecendo e não rejeitar a situação. Aceitamos cada virada e reviravolta dos acontecimentos como algo útil e essencial ao processo criativo. Aderindo docilmente ao que é bom em nós e nos outros, mesmo que essa parte boa seja como a menor das brasas, conseguiremos manter-nos afastados do poder inferior. Quando os outros forem ásperos, poderemos ser embotados, capazes de manter uma perspectiva moderada e justa sobre nossos erros e os deles. Assim, a docilidade permite que a claridade e a independência interior retornem.
...O poder do bem jaz na consistência de nossa determinação em servir ao Poder Superior. Assumimos um interesse ativo no resgate dos outros quando lhes damos espaço para que encontrem seu caminho; podemos conceder-lhes tal espaço se aderimos às suas verdadeiras naturezas, pouco importando quanto dessa natureza ficou eclipsado e por quanto tempo. A aderência a estas realidades interiores provoca a superação daquela situação renitente e produz uma revolução na atitude das pessoas.
...Ao mantermos a docilidade, é importante que não julguemos as coisas unicamente por sua aparência externa, pois agindo assim perderemos o senso da verdade interior da questão. Para tal, será vantajoso apegar-nos à perspectiva de que "as coisas são como têm de ser", com propósitos que não somos capazes de ver. Se apenas conseguirmos nos concentrar em fatores externos, os culpados são a vaidade, o desejo ou o medo. Queremos saber como nos parecem as circunstâncias externas ou receamos que os outros interpretem mal nossa falha – a falta de uma tomada de posição. Devemos resistir vigorosamente às considerações e demandas da vaidade, às perturbações em nosso equilíbrio, provocadas pelo desejo.
...Com freqüência, os que invejam nossa independência interior procuram atrair-nos para o jogo da lisonja. Eles querem saber se nossa força é real. Se conseguirem perturbar nosso equilíbrio, contentar-se-ão em não crescer, presos à sua rigidez defensiva. Se conseguirem nos deixar ameaçados, seu ego terá conquistado uma vitória.
...Talvez mais importante do que os desafios a nós apresentados pelos outros seja que isto nos leve a descobrir dúvidas que ainda tenhamos sobre nós ou nosso caminho. Descobertas estas dúvidas, poderemos lidar com elas. A docilidade e o afastamento são as únicas respostas corretas a tais desafios. Assim que eliminarmos a vaidade de saber como os outros nos vêem, a docilidade surge fácil. Esta docilidade permite que compreendamos e sejamos pacientes, conosco e com os outros.

in O Guia do I Ching; Anthony, Carol – Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 1990

Candomblés na Bahia


CAPÍTULO V

1

...A liturgia nagô serve de padrão e modelo para as festas de todos os candomblés, com pequenas alterações que não modificam essencialmente a sua fisionomia.
...O tempo de iniciação, entre os nagôs e os jêjes de cerca de um ano, vai-se reduzindo com os Angolas e os Congos, até ficar em apenas 17 dias entre os caboclos, ou mesmo zero, em certos casos. Se as filhas nagôs e jêjes se dedicam, por toda a vida, a um único orixá, os Angolas e os Congos, e especialmente os caboclos, podem receber em si dois, três ou mais encantados. As filhas nagôs e as vôdúnsi jêjes, quando possuídas pelos deuses, dançam de olhos fechados, com movimentos para dentro do círculo. Os candomblés de Angola e do Congo seguem mais ou menos esse exemplo, mas os encantados caboclos dançam de olhos abertos, com movimentos para fora. A dança dos candomblés nagôs e jêjes, e em menor escala Angola e Congo, é pesada, desgraciosa e monótona, quase senhorial, exigindo movimentos apenas de braços e pernas, exceto em determinadas ocasiões, enquanto a dança dos candomblés de caboclo é animada, vivaz e decorativa, permitindo muito de iniciativa pessoal, com flexões do tronco e dos joelhos e súbitas reviravoltas do corpo. Os deuses, depois de manifestados, em todos os candomblés, são recolhidos para o interior da casa e vestidos com as suas paramentas especiais. Os candomblés de caboclo, entretanto, quase nunca seguem esse costume – e é comum que se dance mesmo com a vestimenta profana. Entre os deuses nagôs e jêjes, somente Ossãe fuma, somente Exu come cachaça e fumo, mas, entre os caboclos, a Caipora e o Boiadeiro pitam cachimbo, Martim-Pescador bebe canadas de cachaça e os demais encantados fumam charuto. Nos candomblés nagôs e jêjes, os atabaques são percutidos com cipós chamados ôghidavís; nos candomblés de Angola e do Congo, ora com os ôghidavís, ora com as mãos; nos candomblés de caboclo, invariavelmente com as mãos. As insígnias dos ôrixás nagôs e jêjes vão perdendo as suas características, nos candomblés de Angola e do Congo, pela sua substituição por objetos semelhantes, singulares ou curiosos, e são gradual ou totalmente eliminados nos candomblés de caboclo. Somente nos candomblés de caboclo pode suceder que pessoas completamente estranhas à casa, quando em transe, dancem, sem cerimônia, em meio aos demais encantados.
.
Oxunmarê

7

...Os candomblés obedecem a certos ritos de purificação, destinados a preparar a casa para o novo ciclo anual de festas.
...Em todos os candomblés se realiza, numa determinada sexta-feira do ano, a festa da água de Oxalá. Esta cerimônia, no Engenho Velho, se realiza na última sexta-feira de agosto e no Opô Afonjá (Aninha) na última sexta-feira de setembro. Às primeiras horas da manhã, ainda com escuro, as filhas, completamente vestidas de branco, vão em procissão à fonte que serve ao candomblé, carregando talhas, potes, moringas, quartinhas e outros vasos de barro, em meio a cânticos e danças, buscar água para renovar a provisão da casa. No barracão, os atabaques roncam, enquanto as filhas, em coluna simples, com a vasilha ao ombro, fazem o caminho entre a casa e a fonte, à luz vacilante da aurora. A noite, nesse mesmo dia, o candomblé está em festa. Outra versão da água de Oxalá é a matança de Oxunmarê, realizada por alguns candomblés no Ano-Bom, com a circunstância de que se sacrificam animais para Oxunmarê, o arco-íris, e não para Oxalá.
...Os presentes para a mãe-d'água e o caruru de Cosme e Damião, como abrem os caminhos, são de certa maneira cerimônias de purificação de que os candomblés, coletivamente, se podem valer.
...Os ogãs usam o copo d'água para limpar os seus passos.
...As filhas, quando se sentem necessitadas de purificação, fazem bôrí (dão de comer à cabeça) ou lavam as suas contas. Estas cerimônias implicam na idéia de pecado, por ação ou por omissão, – o desleixo no culto dos deuses. O bôrí se realiza no interior do candomblé e tem por objetivo aplacar as iras do orixá, considerado dono da cabeça da filha, livrar a pessoa de preocupações e dar-lhe saúde. O chefe do candomblé faz uma mistura de ôbi, ôrôbô, ôri e limo da Costa, que esfrega sobre o crânio da filha, e em seguida faz correr sobre a sua cabeça (e, portanto, sobre o orixá) o sangue dos animais prediletos do deus, sacrificados no momento. O bôrí se faz sobre uma esteira e a filha deve estar ajoelhada durante a cerimônia. A lavagem das contas (que representam o ôrixá da pessoa), com sabão da Costa e as folhas especiais do deus, é outra cerimônia de purificação muito comum, com o mesmo resultado do bôrí.
...Homens e mulheres podem, anualmente, purificar o corpo e o espírito a 24 de agosto, na misteriosa fonte de São Bartolomeu, nas vizinhanças de Pirajá, – uma pancada d'água, escondida na floresta, que cai do alto de uma penedia batida por ligeiro raio de sol, em que por vezes surge a serpente do arco-íris.



13

...Os dias da semana são distribuídos, de acôrdo com a tradição nagô, pelos vários orixás, obtendo-se o seguinte quadro:

Segunda-feira – Exu e Omôlu.
Terça-feira – Nanã e Oxunmarê.
Quarta-feira – Xangô e Yansã.
Quinta-feira – Oxóce e Ogún.
Sexta-feira – Oxalá.
Sábado – Yemanjá e Oxún.

...Há certa lógica nesta combinação dos orixás. Na terça-feira, temos a chuva e o arco-íris; na quarta, os raios e os ventos, – a tempestade; na quinta, a caça e as artes manuais; no sábado, a água do mar e a água doce. A sexta-feira é consagrada a Oxalá por influência do catolicismo, mais exatamente do culto do Senhor do Bonfim. Na segunda-feira, Exu garante a felicidade dos dias seguintes e Omôlu garante a saúde e o bem-estar, purificando a semana.
...O domingo se dedica coletivamente a todos os ôrixás.
.
Oxalá

(Cap. I – 3)

...Vejamos agora o barracão – tal como era até 1948, pois, em parte por influência deste livro, dele resta apenas a coluna central.
...Esta sala das festas mede 11,65 m de comprimento por 10,20 m de largura, tem duas portas, uma sobre a ala esquerda (h), outra sobre a ala direita (i), e cinco janelas de pouco mais de um metro de largura, três sobre a ala esquerda, duas sobre a outra face do edifício. Três outras portas abrem para os cômodos interiores. A área do barracão era grandemente diminuída em virtude do espaço reservado aos assistentes femininos (a), que media ora 0,90 m, ora 0,85 m, pelo altar católico (b), pelo assento de Exu (c), pelas cadeiras de confirmação dos ogãs (d) e das ékédes (g), pelo lugar reservado à orquestra (f) e pela coluna central (e), que repousa sobre um estrado de madeira de pouco mais de um metro quadrado de superfície. Em redor desta coluna (e), dançavam as filhas, no sentido indicado pelas setas, e, como as filhas entravam e saíam pela porta do corredor, também este trecho ficava obstruído. Bancos de madeira e cadeiras de todos os tipos alinhavam-se na direção indicada pelas linhas interrompidas. A quantidade de ar e de luz disponível, já insuficiente em condições normais, ficava extremamente reduzida pela aglomeração de pessoas nas portas (h e i), na escadaria (j) e nas janelas do barracão. Pode-se calcular, sem grande esforço, o enorme transtorno que tal aglomeração deveria causar, especialmente nos dias de grandes festas.
...A cobertura do Engenho Velho é de simples telha-vã.
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in Candomblés da Bahia; Carneiro, Edison – 3ª Ed. – Conquista – Rio de Janeiro, 1961
Ilustrações de Carybé e Kantor

Jornal Goretti Informa:

Parcerias

Rosana Freneda e Ângela Sbragia, diretoras do Colégio Técnico Santa Maria Goretti, têm procurado, ao longo do ano de 2008, construir uma base sólida para o ensino de seus alunos dentro do segmento educacional da saúde, firmando fortes alianças com empresas, entidades e associações de renome nacional, tais como algumas das aqui citadas nos textos a seguir.

Estagiários no Hospital Brigadeiro
 
O Hospital Brigadeiro, situado próximo a avenida Paulista, abriu suas portas para acolher estagiárias do Goretti em sua divisão de podologia, onde demonstrarão, na prática, os ensinamentos obtidos.

ACM: Intercâmbio Internacional

A ACM/SP firmou importante parceria com o Goretti, que propiciará estágios de alunos do colégio em acampamentos organizados pela centenária entidade em diversas localidades dos Estados Unidos da América.

2º Seminário de Podologia Goretti

O Goretti realizou o Seminário de Podologia, coordenado por Orlando Madella Jr. e palestras de Monica Crestincov, Célia Aparecida da Silva e Dr. Marcus Maia, prof. da Fac. Ciências Médicas da Santa Casa SP.

PEPA e PIVI: Ação Comunitária

As alunas do Goretti atendem renomadas entidades: a PEPA, que atende adolescentes portadores de deficiência mental e o PIVI, com crianças portadoras do vírus HIV e outras patologias.
 
 

setembro 11, 2008

Oco do mundo



O vô do ovo



Geraldinho era pequeno e já sabia voar.
Mal falava em gansolês mas já dava loops e fazia acrobacia, eta palavra esquisita pruma coisa tão bonita.
Seus amiguinhos de turma não gostavam.
Falavam na lata — metido — e o deixavam sozinho planando no alto do céu.



Geraldinho era um só ganso nascido de um ovo só.
Como todo gansinho tinha uma gansa mãe, Madalena, a pequena e um ganso pai, Juvenal, que voava longe sempre. Às vezes voltava, outras não.
Seu grande amigo, seu avô "Seu" Praxedes, servia sempre de guia para seus vôos sozinho.



Chovesse ou fizesse sol, ventasse ou estivesse calmo, voavam, voavam, voavam.
Voltavam tarde, cansados, língua pra fora do bico, asinhas cansadas, exaustos.
Quando acordavam, cantavam, língua de gansos que voam, lambiam as asas, voavam.
Era um tempo bem feliz os tempos de Geraldinho criança. Apesar da saudade que dava ou da falta da turminha



Fred, Fifi e Malu era o trio inseparável. E também impenetrável, pelo menos para o Gê. Sim, pois agora Geraldinho virara somente o Gê.
— Se eu sou Frederico é Fred, se eu sou Filpina é Fifi e se eu sou Maria Luiziana é Malu, porque você não pode ser só Gê, Geraldinho?
— Algum problema?, berraram Fred, Fifi e Malu.
Brincando de cabra cega, correndo no pique-pique, pulando sela ou correndo, o trio seguia deixando Gê do outro lado. De fora.



E quando Gê perguntava fazendo carinha triste, o biquinho para o chão, o trio cruel respondia:
— Au au au, au au au, vai chamar o Juvenal. 
Bem sabendo, triunfantes, que o pai do Gê não voltava.
Triste, triste, muito triste, o Gê procurou seu avô pedindo colo e consolo. Colo de avô é tão bom, pensava ele tão triste.
— Porque a turma não deixa vovô? Eu queria tanto entrar, brincar, correr, ser amigo. Tão pouquinho. Mandaram chamar meu pai. Será que é porque meu pai só foi?



Praxedes sem fazer bico, seu neto ao colo, olhos ao longe falou:
— A  vida é voar e ver. Com o tempo você também vai. Quem sabe se voltará?
O Gê fez que entendeu, mas no fundo, no fundo, sacou só a primeira parte.
Guardou: A vida é voar e ver.



Passaram os tempos, os anos, os meses, semanas, dias e horas, com seus minutos, segundos.
O Gê cresceu, encorpou, ficou um ganso bonito, vistoso, bem aprumado. Um bico bate-estalar que é como se chama assim os bicudos entre os gansos.



Voavam sempre agora, todas as turmas de gansos em viagens sempre juntos.
Fifi, Fred e Malu, voavam juntos também.
E dava muita confusão. Lá no alto quando em vôo, reclamavam do Geraldo, um ganso muito metido. Dava loops, cabriolas, fazia até folha seca, coisas muito das difíceis.



— Não voa nunca certinho, não bate as asas conosco, não bico-estala em conjunto, comentava Fred bravo.
— Não fica nunca em sossego, só voa e estica o pescoço, falou Malu ofendida
— Só voa na frente, esticado e bico-estala sozinho, berrou Fifi, a gorducha, roxa de inveja e ciúmes.
Geraldo fez que não ouvia. Seguiu voando certeiro, nem respondeu aos três outros.



Ao longe, à beira do lago, Tsuru – a garça branca –, montada em seu pé, um só, saudou a passagem dos gansos.
Geraldo e todos os gansos responderam ao cumprimento, grasnando — Boa tarde prima!, e seguiram.



Olhando o sol no horizonte, o vento soprando nas penas, ouvindo e vendo passar todo tipo de pessoas, histórias, casas, paisagens, coisas, Geraldo bico estalou:
— Verdade vovô, verdade, a vida é voar e ver. E pode ser que eu nem volte.


Texto: Cid Pimentel
Ilustrações: Nicolielo