outubro 01, 2008

O caçador



Herne ou Cernunnos
Hh-errm!... Hh-errm!... Hh-errm!...
A fêmea do veado chamando o macho



...Nos séculos anteriores à era cristã os conhecimentos e as lendas celtas não foram anotados pelos celtas da época porque eles não tinham escrita, a não ser o gaulês usado apenas para epitáfios curtos e outras frases gravadas em pedras. A história, a mitologia e a sabedoria dos celtas, esta aliás muito rica, foram passadas oralmente de geração em geração pelos druidas e bardos que tinham muitos anos de treino naquele método.

...O conhecimento de que dispomos daquela tradição verbal vem dos monges cristãos que a registraram. A fonte mais rica de todas é irlandesa, porque os primeiros monges irlandeses anotaram a tradição com uma fidelidade admirável. Os deuses e deusas foram abertamente transformados em heróis e heroínas da raça, mas a história de todos sobreviveu com pouco mais que um assentimento formal e ocasional às exigências cristãs, facilmente detectadas.

...Desse tipo de sagas escritas, como o Lebor gabáIa erenn (Livro da tomada da Irlanda ou Livro das invasões) e o Táin bó cuailnge (O estouro da boiada de Cooley), assim como das lendas folclóricas ligadas a santos como santa Brígida, podemos colher uma idéia razoavelmente fidedigna dos deuses e deusas da Irlanda anterior ao cristianismo.

...No que se refere às lendas galesas, temos menos sorte. A principal fonte substancial é o Mabinogion, mas, observou Matthew Arnold: "A primeira coisa que nos impressiona quando lemos o Mabinogion é a naturalidade com que o narrador de histórias medieval está saqueando uma antiguidade cujo segredo ele não possui inteiramente".

...Quanto à Inglaterra e à Escócia, não temos nem ao menos um Mabinogion: só temos folclore, o indício de artefatos como figuras talhadas na pedra, da estatuária romano-britânica, nomes de lugares e o que ficou conhecido como tradições pagãs dos celtas, saxões e outros que contribuíram para a síntese final; e no momento em que aquela síntese se estabeleceu, o controle era do cristianismo, um cristianismo do tipo romano, disciplinado, não do tipo mais livre como foi o céltico primitivo.

...Isto nos leva ao fato surpreendente de não podermos ter certeza do nome verdadeiro do deus de chifres celta. Tudo que temos é o Heme do folclore britânico e o feliz acidente de um altar gaulês isolado e parcialmente mutilado em que aquele deus aparece com o nome de Cernunnos.

...Ele existiu, disso não pode haver dúvida. Está retratado em muitos artefatos celtas, desde uma escultura talhada em pedra que se encontra no Val Carmonica (norte da Itália) e data do século IV a.C. até o famoso Caldeirão de Gundestrup, encontrado numa turfeira da Dinamarca.

...Os mais próximos a nós se encontram na cruz medieval do mercado que há no centro de Kells (condado de Meath) e alguns quilômetros mais adiante, numa pedra existente no adro do cemitério da igreja da colina de Tara (veja o Quadro 10 de O modo dos bruxos). A maior parte das pessoas provavelmente pensa que o desenho que há na cruz do mercado foi feito para indicar o Demônio, mas, tendo em vista que ele está ladeado por duas criaturas parecidas com um lobo, é óbvio que se trata do Rei dos Animais dotado de chifres; os entalhadores medievais tinham poucas inibições em relação aos objetos pagãos, o que é confirmado por tudo, desde o diabinho de Lincoln até Sheila-na-Gigs e inúmeras máscaras enfeitadas com folhagens.

...Normalmente ele é retratado com chifres e acompanhado de animais. Em geral, usa o torc (gargantilha circular) da nobreza celta no pescoço ou nos chifres. Muitas vezes, segura uma serpente de chifres ou com cabeça de carneiro, como no Caldeirão de Gundestrup.

...Se ele está tão difundido e é tão semelhante em diversas representações, por que não aparece no grande volume de lendas que dá nome a todo mundo, desde Dagda, Lugh e Dana da Irlanda até Arianrhod, Lleu Llaw Gyffes e Cerridwen de Gales?

...A explicação mais plausível é que, enquanto as divindades das lendas registradas são as de uma aristocracia de guerreiros, o Rei de Chifres dos Animais, da Natureza e da Fecundidade era primordialmente um deus das pessoas comuns. As Deusas-Mães e as deusas da Terra tendiam a ser comuns aos dois grupos, mas os deuses masculinos tinham mais espírito de classe. Os deuses dos lavradores dificilmente entrariam nas canções que os bardos cantavam para os reis guerreiros.

...Como disse Proinsias MacCana (em Mitologia celta, p. 48): "O interesse evidente da divindade pela fecundidade pode ter influenciado a forma do culto e o conteúdo do mito desse deus, e isto, por sua vez, talvez explique por que os artistas do período cristão primitivo tendiam a associá-lo a Satã, e por que só sobreviveram elementos residuais daqueles mitos. Nessas circunstâncias, provavelmente o culto de Cernunnos pode ter perdurado mais tempo nas camadas mais baixas da sociedade, onde os costumes eram conservadores e era difícil impor a ortodoxia. Infelizmente, este território é praticamente desconhecido, pois só nestes últimos tempos os usos e crenças das pessoas comuns receberam um reconhecimento consciente na literatura escrita".

...Muito razoavelmente, os estudiosos da mitologia pagã usaram como rótulo geral o nome Cernunnos, único nome do Rei de Chifres celta registrado na época contemporânea. Mas, sendo da Gália, é provável que 'Cernunnos' seja uma latinização ou uma helenização do deus celta nativo. E o fato de sobreviver no folclore britânico um deus equivalente chamado Heme sugere que o verdadeiro nome tinha a raiz H-RN ou K-RN.

...Existem outros indícios disto. Por exemplo, Conall Cernach, herói do Ulster em Táin bó fraich (O transporte do gado de Fraich) vai atacar uma fortaleza guardada por uma serpente terrível — e a serpente se submete a ele docilmente, pulando-lhe no cinto, onde normalmente é encontrada a serpente que acompanha Cernunnos. Isso não seria uma lembrança de uma história de Cernunnos? Tendo em vista que o galês irlandês é o celta camuflado, a forma esperada seria K-RN.

...Há mais K-RNs entre os santos irlandeses, figuras semilendárias que (como Bridget ou Bríd) absorveram as características de divindades pagãs de nomes semelhantes. Kieran ou Ciaran era o nome de dois santos do século V ou VI, ambos ligados a lendas de animais. São Kieran de Clonmacnoise tinha uma raposa domesticada que costumava ajudá-lo a carregar o que ele escrevia. Outros santos tinham tantos ciúmes dele que rezavam para que morresse logo; uma exceção era Columkille (Cotumba), o que é lógico, pois tinha afinidades druídicas e era um dos líderes da Guilda dos Bardos. Pouco antes de morrer, Kieran pediu que depositassem seus ossos numa colina parecida com um veado e lhe resguardassem o espírito, em vez de guardar relíquias suas. São Kieran de Saighir construiu para si uma cela de eremita com a ajuda do porco-do-mato que foi seu primeiro discípulo, ao qual logo depois acrescentou uma raposa, um texugo, um lobo e uma corça que lhe obedeciam as ordens.

...Perto de onde moramos há um 'Poço de São Kieran'; algumas pessoas ainda se lembram do antigo costume de ir ao poço no dia desse santo levando os cavalos, que recebem uma bênção ritual.

...Outro santo irlandês, chamado Cainnech, tinha uma corça que o deixava usar os chifres como suporte de livros.

...Quanto à forma H-RN, Herne, o Caçador, é uma figura do folclore britânico. A melhor lenda dele está associada ao Great Park de Windsor, onde dizem que ele aparecia nas épocas de crise nacional. Coroado com chifres de veado, ele lidera a Caçada Selvagem de cachorros de orelhas vermelhas, num passo furioso céu afora. Em Gales o chefe da Caçada Selvagem se chama Gwyn – não tão diferente.

...Uma das mais famosas figuras do império britânico é o gigante Cerne Abbas, de Dorset. Ele não tem chifres (embora talvez os tenha possuído um dia), mas tem um falo ereto que o caracteriza inquestionavelmente como deus da fertilidade; e o nome do lugar, que também é o nome do rio local, poderia ser pura coincidência? Temos nossas dúvidas.

...Na Inglaterra há muitos lugares que incorporam Herne ou Hern; entre eles está Herne Hill ('Colina de Herne'), no sul de Londres, e que costuma ter o significado de Herons Hill ('Colina do Falcão'). Mas desde quando falcões vivem em morros? Eles não gostam de pescar nos rios?

...Por fim, aqui temos um pensamento interessante de Francis De'Venney, membro de nossa sociedade de bruxos e que tem muita experiência com veados. A fêmea chama o macho com um som que vem do fundo da garganta e se parece com 'HH-ERRRN'. Será que os nossos ancestrais não teriam ouvido Herne ser chamado desse modo e pensado, com razão, que esse era o seu nome?



O ritual de Herne ou Cernunnos

...Este ritual foi concebido por Francis De'Venney e não é o de um grupo de bruxos, nem chega a ser um ritual de parceria de trabalho. É uma experiência iniciatória para um bruxo, na qual a própria Terra é a parceira no trabalho: trata-se de uma comunhão com a Deusa sem intervenção de um representante humano.

...Admitimos ser um ritual difícil de organizar por ser realizado ao ar livre, de preferência num campo natural onde seja possível acender uma fogueirinha e não haja perigo de alguém olhar ou interromper, e onde o clima seja suficientemente ameno para que os participantes possam trabalhar nus. No entanto, vale o trabalho de conseguir reunir todas estas condições.

...Escrevemos este ritual tendo em vista a simbologia celta e o veado macho, que é importante; os bruxos que seguem outras tradições podem exercitar o cérebro e os seus conhecimentos e conceber outros rituais equivalentes. Por exemplo, a Canção de Amergin, declamada no ritual, é uma peça preciosa da tradição celta. Na lenda irlandesa, Amergin foi o bardo e porta-voz dos galeses quando estes tomaram a Irlanda dos tuatha de dannan; dizem que quando os galeses aportaram, ele entoou essa canção, que é analisada em profundidade em A deusa branca, de Graves.


A preparação

...Vamos denominar Homem o bruxo que vai passar por esta experiência. Mais duas pessoas devem estar presentes como ajudantes; nenhuma será a parceira de trabalho do Homem, mas uma ou ambas têm de ser mulheres. É preciso que sejam pessoas experimentadas e sensatas, dessas que sabem prestar primeiros socorros ou ficar por perto quando alguém por acaso entrar num estado alterado de percepção consciente. Ambas ficam vestidas o tempo todo.

...O Homem deve ter se preparado para decorar a Canção de Amergin (reproduzida abaixo) até conseguir recitá-la sem hesitar. Para o ritual, o Homem deve ficar completamente nu, retirando até alguma jóia que possa estar usando, mas convém que deixe as roupas por perto para vesti-Ias depois; é bom não esquecer de deixá-las num lugar onde não fiquem muito frias.

...Acende-se uma fogueirinha, tendo o cuidado de não deixar faltar combustível para que não se apague. Os ajudantes devem preparar e ter à mão algo quente para beber, usando para isso uma chaleira ou uma garrafa térmica.

O ritual

...Os ajudantes sentam-se olhando para a fogueira e o Homem senta-se um pouco afastado, de costas para o fogo, concentrando o olhar nas sombras da escuridão.

...Falando em voz baixa, os ajudantes dirigem a ele determinadas palavras, que podem ser histórias ou canções celtas.

...Quando ele acha que está pronto, fica em pé (sempre de costas para o fogo e para os ajudantes) e declama a Canção de Amergin:

Sou um veado de sete galhos,
Sou um dilúvio solto na planície,
Sou um vento nas águas profundas,
Sou uma lágrima brilhante do Sol,
Sou um falcão num penhasco,
Sou um belo entre as flores,
Sou um deus que incendeia a cabeça com fumaça,
Sou uma lança que mantém a luta,
Sou um salmão no lago,Sou uma colina de poesia,
Sou um javali selvagem,Sou um ruído ameaçador do mar,
Sou uma onda do mar,
Quem, senão eu, conhece o segredo dos dólmenes em estado bruto?

...Quando o Homem termina, repete sete vezes a primeira linha, "Sou um veado de sete galhos", cada vez com mais força, convencendo-se de que aquela afirmação é pessoal e significa exatamente o que está dizendo.

...Finalmente o Homem senta-se, ainda de frente para o escuro, e expande a percepção consciente, cujos limites sente deslocarem-se para fora de sua pessoa.

...Os ajudantes continuam em voz baixa com as histórias e canções.

...O Homem pára de tentar identificar tudo o que está percebendo, como por exemplo os sons e odores que o rodeiam; apenas precisa distinguir o que representa perigo, segurança ou alimento. Precisa se elevar ao estado em que ainda percebe que as vozes que ouve atrás de si são vozes amigas, sem se importar com o significado das palavras nem com o fato de estar ouvindo palavras.

...Também precisa saber (e não apenas aceitar) que é um veado. Nesse estágio, deve seguir os próprios instintos.

...Os ajudantes não devem interferir, a não ser que o Homem esteja se pondo em perigo. Se o 'veado' se afastar, deve ser seguido a uma distância discreta; para isso, é preferível que um dos ajudantes tenha experiência em praticar magia em bosques.

...Quando o corpo do Homem sente frio ou desconforto e volta à consciência normal, volta-se para a fogueira e veste as roupas. Convém tomar uma bebida quente, mas não alcoólica.

...Uma sugestão final: se você acha que sentiu alguma coisa genuína com este ritual, não se apresse em comunicar isso a outras pessoas. É algo muito pessoal e a probabilidade de não ser comunicável é tão grande que qualquer tentativa de contá-lo a alguém pode distorcer o que você sentiu.



in O Deus dos Magos; Farrar, Janet e Stewart – Siciliano – São Paulo, 1993

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