outubro 29, 2008

O objeto-paixão


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"O gosto pela coleção", diz Maurice Rheims, "é uma espécie de jogo passional" (La Vie étrange des objects, p. 28). Com a criança é o modo mais rudimentar de domínio do mundo exterior: arranjo, classificação, manipulação. A fase ativa de colecionamento parece situar-se entre sete e doze anos, no período de latência entre a pré-puberdade e a puberdade. O gosto pela coleção tende a desaparecer com a eclosão pubertária para ressurgir algumas vezes logo depois. Mais tarde, são os homens de mais de quarenta anos que freqüentemente são tomados por esta paixão. Enfim, uma relação com a conjuntura sexual é visível por toda a parte; a coleção aparece como uma compensação poderosa por ocasião das fases críticas da evolução sexual. É sempre própria de uma sexualidade genital ativa mas não a substitui pura e simplesmente. Constitui, em relação a esta, uma regressão ao estado anal que se traduz por condutas de acumulação, ordem, retenção agressiva etc. A conduta de colecionamento não equivale a uma prática sexual, não visa a uma satisfação pulsional (como o fetichismo), contudo pode chegar a uma satisfação reacional igualmente intensa. No caso o objeto toma inteiramente o sentido do objeto amado. "A paixão pelo objeto leva a considerá-lo como algo criado por Deus: um colecionador de ovos de porcelana acha que Deus jamais criou forma tão bela nem mais singular e que a imaginou unicamente para alegria dos colecionadores…" (M. Rheims, p. 33.) "Sou louco por este objeto", declaram e todos, sem exceção, ainda que não intervenha a perversão fetichista, conservam à volta de sua coleção um ambiente de clandestinidade, de seqüestro, de segredo e de mentira que apresenta todas as características de uma relação culposa. É este jogo apaixonado que constitui o sublime desta conduta regressiva e justifica a opinião segundo a qual todo indivíduo que não coleciona alguma coisa não passa de um cretino e um pobre destroço humano."¹


O colecionador não é sublime portanto pela natureza dos objetos que coleciona (variando este com a idade, a profissão, o meio social), mas pelo seu fanatismo. Fanatismo idêntico tanto no rico amador de miniaturas persas como no colecionador de caixas de fósforos. Nesta qualidade, a distinção que se faz entre o amador e o colecionador, o último amando os objetos em função de sua ordem em uma série, e o outro por seu encanto diverso e singular, não é decisiva. O prazer, tanto em um como no outro, vem do fato de a posse jogar, de um lado com a singularidade absoluta de cada elemento, que nela representa o equivalente de um ser e no fundo do próprio indivíduo — de outro, com a possibilidade da série, e portanto da substituição indefinida e do jogo. Quintessência qualitativa, manipulação quantitativa. Se a posse é feita da confusão dos sentidos (mão, olho), de intimidade com um objeto privilegiado, é igualmente toda feita de procura, de ordem, de jogo e de agrupamento. Para se falar claro, existe aí um perfume de harém em que todo o encanto é o da série na intimidade (todavia com um termo privilegiado) e o da intimidade na série.


Dono de um serralho secreto, o homem é por excelência senhor no seio de seus objetos. Nunca a relação humana, que é o campo do único e do conflituoso, permite esta fusão da singularidade absoluta e da série indefinida: daí ser ela fonte contínua de angústia. O campo dos objetos, ao contrário, que é o dos termos sucessivos e homólogos, é tranqüilizador. A preço, bem entendido, de uma astúcia irreal, de abstração e regressão, mas que interessa. "O objeto, diz Maurice Rheims, é para o homem como uma espécie de cachorro insensível que recebe as carícias e as restitui à sua maneira, ou antes as devolve como espelho fiel, não às imagens reais, mas às desejadas" (p. 50).


¹ M. Fauron, presidente dos colecionadores de anéis de charutos (revista Liens do Clube francês do Livro, maio de 1964).



in O sistema dos objetos; Baudrillard, Jean – Perspectiva – São Paulo, 1968
Itustração: Sammekull, Mattias; The Collector – 2008 – Oil on canvas, 90x75cm

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