novembro 11, 2008

Coração



Depois que — por amôr — Regina perdeu a vergonha, rodou loucamente de abysmo em abysmo. Uma queda, a final de contas, que se poderia dizer ascenção. Por ventura não é o céo um abysmo para cima? Não se limitou a jogar a coifa sobre os moinhos. Arremessou a propria cabeça, que se foi para a banda das demencias, com uma gargalhada satanica, no meio da fulguração meridiana dos cabellos louros. Que desvairos então! Seu nome ha de ficar legenda, nas memorias da vida livre. A endiabrada belleza dava-lhe de sobra para extenuar amantes, em ouro e sangue. Saltaram-lhe aos pés os tampos de ferro dos cofres millionarios, e ella subia numa explosão scintillante de libras esterlinas, como uma visão da fortuna. Os prazeres vinham processionalmente ao throno do seu successo. Visitavam-n'a todas as vaidades do luxo depondo-lhe aos pés thesouros de valia infinita. A côrte dos seus amantes cercava-lhe o banho, como a ablução religiosa de uma divindade. Disputavam-n'a após, em desafios de morte, á primazia no toast da sua lavagem perfumada. Um dos seus grandes mortos em duello, rivaes suicidas. E sorria, então, entre ás cruzes, ao sol melancholico do Campo Santo, pergunttando se effectivamente é do amôr que a vida vem.

Atravessou a existencia realisando a mythologia de Cythera, com a omnipotencia da sua nudez e do seu soberano descaro. Hoje está velha. Quando se fala em coração, ri muito e conta um sonho que teve. Mil virgens — ella sendo rainha — mil virgens pallidas que lhe vinham offerecer o coração, sob uma fôlha de parreira.


in As Canções sem Metro; Pompeia, Raul – Casa Mandarino – Rio de Janeiro, sd
Ilustração: Oferenda suspeita; J. Blam; Watercolour

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