janeiro 29, 2009

Douceur de la vie



É natural que intelectuais e artistas gostem da companhia dos ricos e poderosos. À parte primitivos vocacionais, Guarnieri, Plínio Marcos, ou Henfil, eles pertencem à elite, por mais que o neguem, inclusive pregando e atuando em revoluções. As duas coisas, elitismo e "subversão", podem coexistir numa pessoa. Como fugir ao elitismo quem se sabe capaz de transformar experiência em formulação lógica, ou beleza, esse trabalhador que carrega as ferramentas na cabeça, na frase de Maugham? E riqueza e poder são esteticamente agradáveis a cérebros suscetiveis por excelência às atrações do estético. Se come melhor na mesa dos ricos, em geral (há muito novo-rico no Brasil...). As bebidas costumam ser excelentes. Há casas magníficas em que vemos, no ambiente adequado, um habitat humano, quadros só encontráveis na monotonia impessoal dos museus. Algumas mulheres, à parte cheirarem sempre bem (nada do honesto suor e desarranjo de um dia de trabalho), se vestem, pintam e penteiam em nível de modelos internacionais. E aprenderam à perfeição as artes da gueixa. O próprio rico e poderoso tem a aura, o charme perigoso, do tubarão, que, no filme aquele, me pareceu, apesar de ser de borracha, mais interessante que os caçadores, feitos de papelão histriônico. E muitos senhores viajaram, falam diversas línguas, possuem informações inacessíveis à "ignara", sabem das coisas, conhecem a variedade cultural do mundo e são, desde que não falemos de dinheiro, refinadamente tolerantes.

Os intelectuais e artistas são tão esnobes da "diferença" que os marca quanto aristocratas e bem-nascidos dos nomes. Estes, a sós, não falam de outro assunto que a ascendência que supostamente os distingue do resto dos mortais. Os intelectuais exibem maior versatilidade, mas sempre chega o momento que, a sós, comentam a indigência mental dos "outros", nem sempre caridosamente...

É uma atração entre elites. Muitos tubarões devem apreciar a elegância e inteligência dos delfins, e estes a fúria poderosa dos tubarões, que não pedem, tomam o que querem. Nada disso precisa significar compatibilidade de objetivos, ou de valores. Os vassalos da classe dirigente na imprensa e (sub)intelectualidade se irritam com o acesso do intelectual de opinião própria à grande burguesia. Cunharam o pejorativo "esquerda festiva". Wilde dizia que fala mal da (alta) sociedade quem não consegue penetrá-la. Minha opinião dos críticos da "esquerda festiva" é que gostariam de participar dela.

Há nuances, claro, entre freqüentar gente socialmente "bem-nascida", por prazer estético (os pobres são extremamente desagradáveis. É um dos motivos que tantos intelectuais de esquerda pretendem, pela revolução, elevá-los à dignidade humana que condições sociais lhes negaram), e as auto-ilusões dos que se rendem e servem aos interesses da burguesia, ainda que pela omissão. Acho mais útil bebericar com Walther Moreira Salles, que pode me ensinar fatos que a imprensa perdeu, à parte o charme do cavalheiro, do que escrever a enésima peça mostrando operários, "tadinhos", são explorados pelos capitalistas, "bicha, bicha". O Flamengo, ou o Coríntians, são times de futebol (os meus) e não magnetos da capacidade (primitiva, naturalmennte) das massas contestarem o sistema.

As novelas da TV Globo foram melhoradas, me dizem (estou fora do Brasil há quase 10 anos), pelo velho amigo Dias Gomes, que suou bravamente a camisa no teatro, tentando, inclusive, em A Invasão, fazer peça que mostrasse os destituídos, como grupo, classe, personagens centrais, evitando as fórmulas heróico-familiares em que Guarnieri e Vianinha se expressam, que terminam convertendo a idéia de crítica socialista em freudianismo (insuspeitado pelos autores). Agora, as novelas de Dias, é evidente, não incomodam o mais arguto, eficiente e próspero empresario de comunicações no Brasil, Sr. Roberto Marinho, que não esconde o conservadorismo. Logo ...

Prefiro a companhia dos excêntricos e marginais, digo, os marginais das coteries, como Jânio de Freitas, Millôr Fernandes, Cláudio Abramo, Ivan Lessa, Antonio Maria, Sérgio Porto e o Alberto Dines pós-Jornal do Brasil. Alguns se ofenderão que eu os coloque juntos. Vários gostariam de agredir-se mutuamente. Já se agrediram por escrito, se fizeram barbaridades no trato (no names, please). Politicamente, minha formação é parecida com a de Cláudio. Em temperamento, de preservar a independência e dignidade pessoais à loucura, Millôr, Jânio e o Dines que se redescobriu aos 40 anos são bem próximos. Ivan Lessa, o mais íntimo. Em comum têm que são incapazes de aderir a qualquer rebanho. Nunca foram sequer companheiros de viagem da esquerda oficial, papel a que me prestei, fechando o nariz e desenvolvendo uma violenta dermatite alérgica, entre 1960-1964.


in O afeto que se encerra; Francis, Paulo – Civilização Brasileira – Rio de Janeiro, 1980

Um comentário:

Adriana Gragnani disse...

Umas ponderações interessantes, desse Francis. Em resumo, quem tem o poder - seja lá de que dimensão - não quer deixá-lo. Brinca com a sombra, disputa espaços vagos. Um imbróglio.