fevereiro 03, 2009

Os jornais estrangeiros — Existe teatro no Rio? — O drama social



1876 

A imprensa não atingiu ainda sua fase mais brilhante. Esta virá daqui a pouco. Nesta quadra, no entanto, ela é vibrante. Incluindo-se os de tiragem reduzida e irregular contam-se cerca de cinqüenta jornais em circulação. Alguns são bem redigidos, bem apresentados. Dentre esses podemos alistar o Jornal do Comércio, O Globo, A Nação, e o Diáno do Rio de Janeiro. É desse ano o aparecimento do 1º número da Ilustração Brasileira, que vive até 1878. O Diáno do Rio de Janeiro inicia a seção Revista da Imprensa, uma resenha do que publicaram na véspera as principais folhas da corte. Todos esses periódicos mantêm o folhetim da primeira página, leitura preferida do público. E todos dão ênfase aos problemas sociais, às dificuldades da cidade em crescimento. Nec, redator que assina o folhetim do Diáno do Rio de Janeiro define as linhas dessa imprensa: "A imprensa de nossa terra occupa-se de tres cousas: a religião, a politica e a questão social" 1

As folhas mantêm preço razoável: O Globo, por exemplo, cobra 20$ mil-réis por assinatura anual para a corte e Niterói e 24$ para as províncias. A publicidade tem custo mais elevado: os avisos custam 240 réis por linha. Dependentes do serviço de correio para entregas, as folhas chegam às mãos do leitor com grande atraso. No Rio os jornaleiros facilitam essa tarefa. O folhetim é, na verdade, a seção mais lida. A sociedade acompanha o romance traduzido do francês ou os irônicos e chistosos comentários de Nec, dos mais interessantes cronistas dessa fase. "Que Machado de Assis asseverou-me que lia os meus folhetins" — diz ele — "daqui lhe aperto as mãos se houve coragem para tanto" 2

Na rua do Ouvidor, a Livraria Universal dos Laemmert anuncia os jornais estrangeiros, que o leitor poderá assinar em 1877: La Nature — Revue des Sciences, Petit Journal pour rire, Journal du dimanche, La Mode Illustrée, La Saison, Moniteur de Ia mode, Moniteur des Dames et des Demoiselles, La Toilette des Enfants, Conseiller des Dames et Demoiselles et Les Modes Françaises — Journal des Tailleurs. E outros publicados em Londres e Nova Iorque: lllustrated London News, The Graphie, Punch, All the year round, The London Journal, The Young Ladies Journal, Family Herald, The Mechanic's Magazine, The Engineer. Cobram-se mais 10% na assinatura para as províncias. A essa lista pode-se juntar mais um períodico muito procurado: O Brasil, publicado em Lisboa "e dedicado á defeza dos interesses dos subditos portuguezes residentes no Império" 3

Essa imprensa reflete os anseios da sociedade fluminense. Suas alegrias e prantos. Nec retrata, com graça, o curso dessa sociedade em formação: "O povo fluminense existe: — e existe no Rio de Janeiro, desde os tortuosos meandros do becco do Cotovello 4 ao alto da Boa Vista, da praia de Botafogo até o morro da Formiga"... "Existe, mas occulta-se" 5. Na opinião do cronista ela só aparece no Natal, nas festas de São João. Podemos acrescentar, sem medo de erro, que ela está presente, também, no teatro, na música, no Prado Fluminense, na regata, no Casino Fluminense, no Clube Mozart, na exposição, na festa cívica, no carnaval. E, extravagantemente, paga 2$ mil-réis para ver exposta na rua do Ouvidor "Mademoisele Rose, a giganta francesa com 21 anos e 2m e 15cm de altura!" 6

Essa mesma sociedade faz famosa a rua do Ouvidor, da qual o próprio redator nos transmite um quadro vivo: "Oh! rua do Ouvidor, senda mysteriosa e eriçada de urzes, onde as cocotes 7 deixam os fragmentos das suas caudas roçagantes e os paios os ultimos farrapos das suas agonisantes carteiras, patria dos francezes de todos os paizes e dos Bohemios de todas as idades, — eu te saudo!... Pois fiquem sabendo que — rua do Ouvidor — é também um euphemismo; aquillo não é rua do Ouvidor, é o becco dos Falladores" 8. Ele mesmo nos fala da vibração que animou o Clube Mozart naquela terça-feira de setembro: "Terça-feira á noute numerosa e brilhante multidão apinhava-se nos salões do Clube Mozart. Alem de outras razões que habitualmente attrahem alli não pequena concorrencia, executava-se então, pela primeira vez nesta Côrte, o hymno do centenario americano, composto pelo nosso distincto patricio Carlos Gomes" 9. A folha em que colabora o saboroso cronista nos informa ainda sobre outras predileções do fluminense. A Real Companhia Eqüestre Inglesa inaugura, na rua do Lavradio, 94, o teatro-circo preparado para exibições eqüestres, ginásticas e acrobacias. No local, onde até então funcionava fábrica de águas gasosas, voltam as touradas. Ou por causa da chuva, ou por pouco entusiasmo, o segundo espetáculo atrai reduzido público. A tourada "não se apresentou na altura de um espetáculo offerecido a uma capital, por falta de pessoal idoneo, e também pelo número limitado de animaes offerecidos á corrida" 10. E também, pela segunda vez, neste ano, o Clube de Regatas promove uma competição em Botafogo. Pela segunda vez, no Teatro São Pedro, encena-se a ópera Salvador Rosa, de Carlos Gomes e o público assisste A Cabana do Pai Tomás, drama que enfoca assunto bem atual. Folha especializada na arte teatral, O Espectador, na seção O Nosso Teatro, faz comentários sobre a qualidade dessa arte: "É ou não a arte dramática presentemente uma utopia no Brasil? That is the question. O pulpito, a tribuna, e o palco são as tres grandes escolas para o desenvolvimento intellectual dos povos!"... "Haverá theatro? Teremos artistas no Rio de Janeiro? Haverá concorrência em relação a numerosa população? Não, não, não!" 11. É sabido que reduzida parcela da população tem acesso às casas de espetáculo. Ou por falta de dinheiro, ou por falta de instrução. Léo, que assina outra crônica, diz que já existiu a arte dramática no Brasil. Em 1829 — fala o cronista — aportou aqui uma companhia (com Ludovina, Romeiro e outros) com o fito de promover a arte dramática. Já possuidor de dotes e talento, com eles aprendeu João Caetano 12

Críticas ao Conservatório Dramático, ao teatro e ao governo são assinadas por J. de A., provavelmente José de Azurara, dono do jornal. 

O público pode ver outros gêneros teatrais. O Casino apresenta programa variado: "Orpheu, Bertha de castigo, Nhô Quim, Kankan francez, musica allemã, fados de diversas nacionalidades"... 13 . No Teatro D. Pedro II, no meado do ano, estréia a companhia formada de crianças, apresentando a pantomima A Gata Borralheira, cuja atração consiste nas caracterizações de estadistas estrangeiros. 

A imprensa, com orgulho, acompanha a carreira do maestro Carlos Gomes. Do exterior vem a notícia de que acabara de compor a ópera Cromwell, extraída do drama de Vitor Hugo e programado para o Convent Garden, de Londres, novidade que embevece os amantes do teatro e admiradores do compositor. 

O lado amargo do cotidiano fluminense também está nas colunas. O Editorial do Diário do Rio de Janeiro chama a atenção das autoridades para uma indústria "summamente incommoda ao público". Pequenas orquestras ambulantes, compostas de meninos italianos, de ambos os sexos, de 5 a 12 anos, andam, diariamente, pelas ruas da Corte e arrabaldes. Em troca de concertos de canto, rabeca e harpa atacam a bolsa "dos moradores e transeuntes". Mal se pode passar nas ruas ou entrar numa casa comercial. O redator condói-se da sorte desses miseráveis. Mas, acaba convencido de que as pobres crianças maltrapilhas e sujas"fazem musica a contra gosto seu e mais ainda dos que as ouvem" . Os menores são explorados por gananciosos aventureiros. E formam novo sistema de exploração do escravo 14

Os jornais criticam a insegurança em que vive a população. A situação não tem a gravidade da atual, quando o roubo assume formas inauditas, revestido de agressão, brutalidade, seqüestro. Mas, já se fala da necessidade do cidadão portar arma. Os chamados ratoneiros e os capoeiras são os marginalizados, os inimigos da sociedade. 

O incidente ocorrido com Saldanha da Gama e sua senhora pode ilustrar o problema: o carro em que viajavam a caminho de São Cristóvão é assalltado por audacioso indivíduo, que tenta arrancar a pulseira do braço da senhora. 

Drama, cujos protagonistas são personagens da própria sociedade, também se encena na via pública. A sociedade fluminense é criada através de dogmas e preconceitos — sobretudo os de ordem religiosa — dos quais está longe de libertar-se. O dia está no seu começo. São 10 horas da manhã. A rua da Quitanda é o palco da cena de sangue. Seus protagonistas dois esstudantes da Escola Politécnica. João Capistrano da Cunha fora absolvido pelo júri no julgamento da ação movida pela família de Antônio Alexandre Pereira, cuja filha fora desvirginada. O irmão da moça ofendida descarrega cinco tiros no ofensor, que morre no local. 

Não se pode dizer que o Rio tenha um bairro ou uma zona destinada às mulheres que comerciam o próprio corpo. Em certas ruas do centro residem algumas mulheres — necessitadas e infelizes, — que procuram atrair os homens provocando assim as autoridades policiais. Para a vida recatada e rotineira do Rio de Janeiro, seu comportamento é um escândalo. O Chefe de Polícia expede circular às autoridades distritais e recomenda melhor patrulhamento nas ruas onde "transitam prostitutas". Comenta o jornal que a prostituição aumenta. Nessas ruas homens ociosos "dialogavam com essas mulheres de maneira affrontosa e horripilante, dizendo phrases muito semelhantes ás que se ouvem na Whitechapel ou baixa City de Londres" 15 . Como sempre ocorre, a ação policial se excede. Nem mesmo o domicílio é respeitado. Certa feita, moradora da rua Teófilo Otoni é intimada a comparecer perante a autoridade policial, por se achar na janela, "quase que vestida somente com a propria pelle" 16

1 Diário do Rio de Janeiro — 3/12/1876 
2 Diário do Rio de Janeiro — 17/2/1876. 
3 Jornal do Comércio — 6 e 14/12/1876. 
4 Beco ou Rua do Cotovelo — conhecida por esse nome desde 1815, por ser tortuosa, formando um cotovelo. Recebeu depois o nome de Rua do Bispo Dom Vital, que permaneceu até 1882, quando voltou à denominação antiga. Passou depois (1917) a chamar-se Vieira Fazenda, desaparecendo com a urbanização da Esplanada do Castelo. Morro da Forrmiga — assim era conhecida parte do Morro da Providência, na Gamboa. 
5 Diário do Rio de Janeiro — 25/6/1876. 
6 A Nação — 10/7/1874. 
7 Cocote — meretriz elegante. Paio — inábil, otário. 
8 Diário do Rio de Janeiro — 16/7/1876. 
9 Diário do Rio de Janeiro — 10/9/1876. 
10 Ib. — 27/12/1876. 
11 O Espectador — 15/7/1876. 
12 Ib. — 15/7/1876. 
13 A Nação — 13/1/1876. 
14 Diário do Rio de Janeiro — 3/6/1876. 
15 Ib. — 9/11/1876. Whitechapel — antigo bairro de Londres, de má reputação. 
16 Ib. — 21/9/1876. 


in O dia-a-dia no Rio de Janeiro, segundo os jornais – 1870 — 1889; Renault, Delso – Civilização Brasileira – Rio de Janeiro, 1982
Imagem: DegreeArt.com – 2008

Nenhum comentário: