fevereiro 15, 2009

Pérolas aos poucos



Um Anjo
red cat

O anjo desceu na praça, sentou do lado do moleque, ficou olhando. O menino acabou de consumir o crack, espiou em volta, noite tinha virado dia, o ronco da barriga parecia fartura de banquete, a mulamba caída na calçada virou princesa. Feliz, encarou o anjo: Valeu, mermão!




Maracujá de gaveta
Borges

Todo dia, vinte vezes, ela abria aquela gaveta. Tava lá, seco, enrugado, o maracujá de Anísio. Ah, o beijo de Anísio, as mãos de Anísio, a safadeza de Anísio!... Deu pra ela o maracujá como quem dá uma prenda rara. Mas depois sentou praça na Marinha, nunca mais voltou, bandido...




Adultério
red cat

Vestiu a roupa azul, comprou as rosas brancas, foi pro mar, tudo certo como mandou o santo. Que deixasse seu homem livre, era só o que pedia pra Iemanjá. Que ele seguisse o coração, fosse o que fosse que o coração mandasse. As ondas ouviram, o mar ouviu, na volta ainda tinha maresia na pele. Em casa, aguardou. E então ele veio, olhando de canto: Tou indo, larguei a mulher, vim dizer adeus a você também, morena. Vou embora com o Agenor.




Oásis
Borges

Diz que na hora da morte, toda memória passa como um filme. Não foi assim com Dona Idalina. Marido chato, filhos ingratos, infância sofrida, tudo ela preteriu pelo sonho imutável e obstinado. Cercada por todos, bisnetos remelentos, netos alvares, a tenda de oxigênio transformou-se, mágica, na barraca de seda onde Rodolfo Valentino, o filho do sheik, beijou, enfim sua boca moribunda.




Abandono
Borges

Foram quarenta e cinco anos ao lado de Alayde. Não tolerava os gatos dela, mas aprendeu a alimentá-los e a limpar a sujeira que faziam. Conviveu com eles como conviveu com ela. Depois do enterro, pensou que sua vida tinha acabado junto com a dela. Pensou em fechar as janelas, abrir o gás, com os gatos em volta. Não obstante, viveu ainda oito anos no velho apartamento, com seus gatos e seus peidos.




Amanhecer
red cat

Primeiro foi só um brilho, bem ali no canto onde tinha de estar o sapato jogado de qualquer jeito. Virou-se para o outro lado, apertou os olhos, abriu-os. Agora era uma faixa larga, carregando calor até seu corpo, aquecendo finalmente a alma. Não disse nada, não se mexeu ante aquele sol inesperado que explodia em meio à noite. Apenas deixou que secasse suas lágrimas.





Veleiro
Borges

Nem sempre o barco que vai é o mesmo que volta. Quanta sereia o desvia, quanta onda com ele dança. Assim foi quando Oberdan saiu aos pouquinhos dos olhos molhados de Lindaura, o aceno que prometeu regresso cada vez mais longe, cada vez menor, aquele aperto no peito, aquele bolo na garganta. Três semanas ela esperou, olhando o mar, olhando o cais, molhando as pedras com se pranto de ânsia e de tesão. Um dia, o barco voltou, mas quede Oberdan?




A alma do gato de Cortázar
Borges

Viveu entre o afago distraído de quem lia e os intrincados solfejos de Charlie Parker. Conheceu o belo em todas as dimensões possíveis, escalou estantes infindas, mofo de livros. Seus ouvidos sensíveis aprenderam a distinguir a melopéia sincopada do portenho do sabor travoso do francês. No paraíso dos gatos, foi adotado por Platão.




Secretária eletrônica
red cat

A primeira lição de liberdade chegou muito inesperada. Foi quando viu um amigo deixar o telefone tocar e tocar e tocar sem um só gesto de ansiedade. Aquilo ressoou fundo na alma, questionou perplexidades e grilhões, encostou mesmo sua alma contra a parede. Ao chegar em casa, riu sozinha e, sem dó nem piedade, desligou a secretária eletrônica da tomada. Na nova vida de asas, nunca mais a usou.




Destino
Borges

Nem quando Sinésio casou enfim com a mana Fátima, Filó deixou de amá-lo, de desejá-lo como cada dia de sua adolescência. Como era injusto! Como era injusto! Ah, se ele soubesse quanta noite ela se consumiu ardendo por seu beijo, por seu corpo, por sua atenção, que fosse! Mas ainda precisou esperar por 30 anos até que a pneumonia levasse a mana e abrisse a Sinésio seu inexorável destino.




Circo
red cat

Nunca gostou de circo. Todo mundo ria do palhaço, ela se enchia de pena e ficava flutuando numa névoa, achando muito triste que fizessem com aquele pobre homem o mesmo que com ela, nas correrias de rua. Quando o domador entrava na jaula com seu chicote, apertava os olhos com força, sem querer ver a dor do leão. E anos mais tarde, no longo vôo da ponte, lembrou-se com o coração apertado da trapezista por quem sempre rezava nas torturantes tardes de circo. 



in Pérolas aos poucos; Borges e Red Cat – O Caixote – São Paulo – Brasília, junho 2002
Série de minicontos feitos em sala de bate-papo do UOL entre Sergio de Castro Neves (Borges) e Lizete Mercadante Machado (Red Cat), posteriormente com ilustrações e arranjos musicais em midis por Marcos Fernandes (Agni, o Guran. Mais tarde Guinigui) em http://www.ocaixote.com.br/

Um comentário:

Adriana Gragnani disse...

Excelente resgate. Gostei!