fevereiro 06, 2009

Crônica de burrices anunciadas



Valério Bemfica

Desculpem os leitores pelo título pouco sutil, parafraseado de Garcia Marquez. O mais correto, do ponto de vista jornalístico, talvez fosse: "Público do Cinema Brasileiro Diminui". Mas já usamos tal título no meio do ano, falando do primeiro semestre de 2008. E no começo do ano, falando de 2007. E formulações parecidas foram usadas outras vezes — a notícia virou rotina. Optamos por uma mais agressiva dessa vez, pois apenas a subserviência — seja ela remunerada ou não — aos monopólios da indústria cultural não é suficiente para explicar a nova queda nos espectadores de filmes brasileiros: 8,7 milhões em 2008, contra 9,8 milhões em 2007. Em termos percentuais perdemos ainda mais, ficando com 9,72%, uma vez que o número geral de ingressos vendidos teve um pequeno aumento. E, como não poderia deixar de ser, o preço médio dos ingressos e a renda dos distribuidores e exibidores também aumentou. 

Para que se tenha uma idéia do que isso representa, gostaríamos de lembrar que em 2003, primeiro ano do governo Lula, o número de espectadores dos filmes brasileiros foi de 22,1 milhões. Há 30 anos, em 1978, quando havia a Embrafilme, chegou a 60 milhões. 

Antes de comentar as burrices anunciadas façamos, porém, uma breve síntese dos argumentos que temos defendido. O setor do audiovisual é extremamente monopolizado. Como apontou Anita Simis, em artigo publicado na edição 2732, esse processo começou nas primeiras décadas do século passado, quando os grandes estúdios de Hollywood começaram a estender seus tentáculos sobre o ramo de distribuição e exibição. Hoje não temos no Brasil um mercado, mas um cartel, dominado por meia dúzia de distribuidoras norte-americanas que abocanham quase 80% dos ingressos vendidos no país e duas redes exibidoras — também estadunidenses — que detém cerca de 50% do público. Todas as decisões sobre o que, quando e quanto exibir são tomadas no exterior. Para essa turma, o cinema nacional é apenas um estorvo, um item que deveria ser excluído de suas planilhas. 

Diante de tal quadro, só através da ação firme do Estado o cinema brasileiro pode se desenvolver. E, por ação firme, entenda-se: uma elevada cota de tela (que inclua não só o cinema, mas também a TV aberta e a TV paga), uma distribuidora estatal, salas públicas de cinema (já que os monopólios desprezam as periferias e cidades menores), ingressos baratos. Nenhuma dessas medidas sequer passa pela cabeça dos luminares instalados no Minc e na Ancine. Pelo contrário, optam por despejar dinheiro na produção de filmes que não serão vistos, tentando comprar o silêncio dos realizadores e garantindo a reserva de mercado para o audiovisual estrangeiro. Vejamos as estultices recentemente anunciadas.

Primeira burrice anunciada

No início de dezembro do ano passado foi armado um circo para, pomposamente, anunciar a criação do Fundo Setorial do Audiovisual. Na realidade, trata-se da regulamentação do uso das taxas criadas junto com a Ancine. A única novidade real é que a FINEP — Financiadora de Estudos e Projetos, empresa pública ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia — passa a realizar a chamada pública e lançar os editais, a exemplo do que acontece com outros fundos setoriais. O dinheiro já não é mais um patrocínio, mas um "investimento", que deverá retornar aos cofres públicos com receita de bilheteria. Talvez os atuais ocupantes do Minc e da Ancine não saibam, mas o financiamento via FINEP já existiu nos tristes anos de FHC. Foi um retumbante fracasso. Dezenas de empresas do setor ainda devem e não fazem a menor idéia de como pagar. E por quê? Simplesmente porque naquela época — assim como agora — os editais ofereciam dinheiro, mas não havia nenhuma política pública que garantisse a exibição. 

É verdade que os gênios estabeleceram quatro linhas de financiamento: duas para a produção (R$ 22 milhões) e duas para a circulação (R$ 15 milhões). As duas para a produção (uma para longas-metragens e outra para produtos destinados à televisão) exigem que o produtor já tenha um contrato prévio de distribuição ou exibição. Não por acaso é a tese defendida por Rodrigo Saturnino Braga, capo da Columbia Tristar no Brasil: só devem ser feitos os filmes que os distribuidores querem. As duas para circulação (comercialização e aquisição de direitos de distribuição) dão dinheiro direto para empresas distribuidoras para que assumam filmes em produção. Caso algum habitante de outro planeta chegasse aqui e deparasse com os editais, poderia pensar que a coisa é séria. De um lado, financiam-se filmes, que já têm garantida a distribuição. De outro, financia-se os distribuidores, para que possam colocar os filmes no mercado. E depois, produtores e distribuidores devolvem o dinheiro ao Estado, com a renda da bilheteria. 

Mas, ao que tudo indica, os comandantes do Minc e da Ancine são terráqueos. E devem saber, portanto, que, dos 82 títulos lançados no mercado brasileiro, só dois ou três conseguiram dar lucro — aqueles associados aos monopólios. Existem, portanto, apenas duas possibilidades: as empresas independentes do setor, sempre na luta para sobreviver, pegam o dinheiro sabendo que não conseguirão pagar, e tentam "dar um jeitinho" no futuro (não seria a primeira vez... ) ou o dinheiro vai parar, indiretamente, na mão dos monopólios. A segunda alternativa nos parece mais provável. As multinacionais da distribuição já estão autorizadas, faz tempo, a usar o imposto devido por suas remessas de lucros para produzir filmes aqui, filmes que elas mesmas distribuem. E só colocarem esses filmes para concorrer nos editais do FSA, em nome de uma produtora nacional, para conseguir uma produção a custo zero. E, nas linhas de distribuição e comercialização, o dinheiro ou acabará no bolso da Globofilmes, versão tupiniquim dos monopólios, ou será tomado por pequenas distribuidoras que, para conseguir honrar seus compromissos, acabarão se juntando com as maiores na hora de colocar os filmes nos cinemas. Em suma, muito lero-lero para dar mais dinheiro — público — para os mesmos. Não é à toa que o Presidente Lula, convidado a participar da cerimônia de lançamento do Fundo, não achou a exposição do tema muito inteligente... 

Segunda burrice anunciada 

Poucos dias depois do lançamento do FSA, outro anúncio da Ancine: a cota de tela. E, assim como no caso do Fundo, na verdade não há novidade alguma, pois a cota é a mesma de 2008, que por sua vez repetiu 2007. Descobriram a fórmula do fracasso e não se cansam de reproduzi-la. Grosso modo, os cinemas brasileiros são obrigados a preencher menos de 10% de sua programação com a cinematografia nacional. Não é preciso ser muito esperto para descobrir porque o mercado de nossos filmes é de 9,72%. As maiores, que lançam menos de uma centena de títulos por ano, têm nove vezes mais espaço para exibi-los do que os cineastas brasileiros, que produzem oitenta filmes. Em um setor dominado totalmente por multinacionais, que evidentemente preferem passar os seus próprios produtos, a cota de tela será sempre o teto, não o piso da exibição de nossos filmes. 

É por isso que, quanto mais a indústria cinematográfica internacional se monopolizava, mais aumentava a cota de tela. E foi essa política que fez com que o nosso cinema se desenvolvesse e criasse público. Ela só foi interrompida quando as políticas neoliberais começaram a imperar, primeiro com Collor e depois com FHC. Mas, ao contrário de outros setores da economia, onde o governo Lula tem revertido as nefastas medidas entreguistas de governos anteriores, na área da cultura — e, particularmente, na área do audiovisual — tais medidas vão sendo mantidas, quando não aprofundadas. Na prática, temos hoje um espaço menor para a exibição de filmes nacionais do que no governo tucano, uma vez que a cota de tela caiu e a produção é muito maior. E, por falar neles, é justamente do principal ninho tucano que vem a última parvoíce que queremos comentar. 

Terceira burrice anunciada

Como quem houvesse descoberto a pólvora, a Secretaria Estadual de Cultura, na pessoa do dublê de exibidor, distribuidor e funcionário público, André Sturm, anuncia que suas políticas acrescentaram 1,9 milhão de espectadores ao público do cinema nacional em 2008 e que, em 2009, serão 2,5 milhões. Como a notícia saiu em um jornal que não faz a menor questão de esconder o seu puxa-saquismo para com o governo de São Paulo, ficamos desconfiados. Mais ainda quando, nas primeiras linhas, vemos o famigerado Saturnino (ou seja, a Columbia Tristar) comemorando o fato. Quem ouve falar do programa, com muita inocência, pode até achar a idéia boa. Trata-se de distribuição de vale-ingresso para alunos da rede pública de ensino. Tais vales, quando efetivamente trocados por entradas de cinema para filmes brasileiros, rendem R$ 3,00 ao exibidor credenciado. 

Nossa primeira impressão foi a de que o grosso do dinheiro iria para os mesmos (quer dizer, as múltis da distribuição e da exibição). Tanto é que Saturnino declara que vai abraçar "furiosamente" a tese de que o dinheiro não deve ir para a produção (senão os cineastas brasileiros vão querer fazer filmes), mas para o consumo — dos filmes que ele distribui, naturalmente. A empresa que ele dirige, aliás, tem 4 dos 10 filmes mais vistos no programa. E as outras múltis mais 3, o que já significa mais da metade dos ingressos. 

Mas desconfiamos que havia mais sacanagem na área. E foi só ler a declaração de André Sturm, Coordenador da Unidade de Fomento da Secretaria de Cultura (e também, não esqueçamos, dono de empresa distribuidora de filmes e de salas de cinema), que a coisa ficou clara. O programa é, segundo ele, "uma forma de subsidiar o cumprimento da cota de tela"! Ou seja, assumidamente, a iniciativa do governo de São Paulo não visa ampliar o público, formar platéias, proteger o cinema nacional. Isso é coisa para nacionalistas retrógrados. A verdadeira intenção é dar uma remuneração para que o "mercado" cumpra a lei! Não é sem motivo a alegria do gerente da multinacional. Receber uma grana para cumprir a lei. Já imaginou se a moda pega? O governo do Estado terá de pagar aos cidadãos de bem que não ultrapassam o limite de velocidade nas estradas, que colocam seus filhos na escola, que cumprem a lei do silêncio etc. Os exibidores e as distribuidoras multinacionais, além de atentar contra o nosso cinema usando todas as formas de concorrência desleal já inventadas, agora exigem dinheiro para cumprir a lei. E uma lei que, como já vimos, estabelece percentuais de exibição muito aquém do razoável. E alguns ainda comemoram... 

A essa altura, o leitor já deve estar concordando com o nosso título. O HP tem feito um esforço bastante grande para defender o cinema nacional. Contamos com ótimos profissionais, com grandes criadores. Temos uma boa tradição na área e, temos certeza, um povo sedento de cultura, com vontade de se ver nas telas dos mais variados tamanhos. Sabemos que os inimigos da cultura nacional são poderosos, mas não invencíveis. Estamos, aliás, acostumados a combatê-los em diversas frentes, assim como somos especialistas em detectar os quintas-colunas e os vendilhões assumidos. Mas, confessamos, para tratar com apedeutas temos uma certa dificuldade. 


in Hora do Povo; Ano XX — Nº 2.736 — 23 a 27 de Janeiro de 2009; pág. 6, Variedades – São Paulo

Nenhum comentário: