maio 10, 2009

O Romance Eletrônico



Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, de Nelida Piñon, é a primeira tentativa — involuntária, inconsciente, rudimentar — que conheço em língua portuguesa do romance não-figurativo, primeiro passo para o romance eletrônico. 

É, nem podia deixar de ser, uma tentativa frustrada. Claro está que essa frustração não decorre de uma coisa que a romancista não quis fazer e provavelmente desconhece. Permanecendo na área do automatismo verbal, ficou também dentro das limitações do pensamento conceitual, dentro das limitações dos campos associativos, dos sintagmas monovalentes e monossimbólicos. Todos os seus signos são signos motivados, são onomatoremas convencionais. É uma linguagem que se mantém simbólica, sem nenhuma inovação na semântica diacrônica. A contradição que aí parece haver deriva da confusão quase geral entre símbolo e sintema. 

O que não impede que Guia-Mapa seja uma experiência fascinante e que precisa ser valorizada, numa literatura que quase ainda não se desvinculou do anedótico e do regionalismo utilitarista. O livro é ilógico, desconexo e gratuito, mas são justamente essas as suas qualidades; os defeitos estão nos momentos em que a autora cai no discursivo, no "poético", no tema: aí se evidenciam os lugares-comuns e os recursos banais de sofisticação. Se Nelida Piñon tivesse ido até as últimas conseqüências, teria provavelmente escrito uma obra-prima. 

Entre nós tem havido algumas boas experiências não-figurativas na prosa e na poesia, feitas pelo grupo concretista. São experiências ainda demasiado presas ao pragmatismo e à lógica. Na poesia, continuam marcando passo na apresentação de objetos conceituais, quase aforísticos. A grande dificuldade que se depara aos inovadores é que têm de reagir contra as velhas fórmulas e nessa reação automaticamente aceitam os termos de uma opção artificial. Chegam por isso a simples antifórmulas. 

Há, no Brasil e no mundo, um pequeno grupo buscando criar os seus próprios cânones. Mas a criação de novos cânones pressupõe o profundo conhecimento dos velhos e pressupõe o gênio. Arma-se o impasse: ver o gênio em termos de rebelião é condicioná-lo a um dualismo incompatível com a sua condição carismática. 

Pode-se escrever poesia e prosa sem palavras, sem que a obra deixe de ser criação literária, sem que perca as suas virtualidades comunicativas? Em primeiro lugar, e antes de responder, é preciso definir a palavra. Se aceitarmos a definição convencional ou uma antidefinição, estaremos fazendo o jogo dos velhos cânones. Se entendermos compreensão e comunicação como acidentes da expressão e da leitura, então a palavra é um elemento irreversivelmente petrificado. (Mas sabemos que até as pedras evoluem). 

A música eletrônica respondeu que é possível escrever música sem notas, sem acordes, sem pautas, sem claves, sem instrumentos, sem harmonia e sem melodia. E música atuante, profunda, que chega aos nervos e à alma com violência, com doçura. Como sempre, a Música está à frente das outras artes, arquétipo e última Thule.  

Falei há pouco em experiências na prosa. Não incluo nelas a obra dos dois maiores escritores brasileiros contemporâneos (e por certo dos maiores de toda a nossa história literária): Dalton Trevisan e Guimarães Rosa. Enquanto Guimarães Rosa, acicatado pela sua inteligência analítica e pelo seu gênio verbal, caminha para uma mundificação ultravocabular, de aglutinações estritamente unissignificantes (sem prejuízo das conotações), Dalton Trevisan retroage à mundificação pré-vocabular, onde a palavra é ela mesma e seu drama. Nem um nem outro, a rigor, fazem experiências. Descobriram seu próprio caminho e realizaram-se nele. Seguem paralelas inversas — portanto, paralelas apenas em segmentos. Podem encontrar-se, mas só num espaço não-aristotélico como o proposto por Van Vogt: um espaço sem conceito. 


Reconheço que o leitor alheio à revolução eletrônica na Estética se sentirá perplexo, se me acompanhou até aqui. Não menos ficaria se lhe dissessem que hoje é tecnicamente possível executar um concerto ou interpretar uma ópera sem instrumentos e sem vozes humanas, apenas com um feixe de luz ou se o convidassem a ver as coisas de em torno — tão familiares à luz convencional — à luz estroboscópica. 

A arte não-figurativa como a conhecemos agora é apenas um antifórmula da arte clássica. Só muito lentamente poderemos evoluir para o novo absoluto. Sentamo-nos com a maior confiança em uma cadeira de três pés, de dois pés e até de um pé; todavia, embora a indústria já esteja em condições de produzir cadeiras sem pés e sem assentos (campos de sustentação), ainda não existem condições psicológicas para o seu lançamento no mercado. 

Pouco a pouco, no entanto, vamos aceitando idéias perigosas. Os poetas e os artistas, em seus momentos de gênio, abalam as primeiras resistências. E um dia, sem sentir a transição, compreendemos. 

Isso que Nelida Piñon tentou no Guia-Mapa está em Sousândrade, o genial poeta maranhense: em parte no Guesa Errante, mas sobretudo no Novo Éden, poema da loucura, praticamente ininteligível. (Talvez o Moosbrugger de Musil o entendesse com a maior clareza.) 

Na literatura francesa, Antonin Artaud aproximou-se ainda mais. O movimento dadaísta percebeu vagamente as implicações da nova verdade verbal — a verdade como variável. O romance neogótico, vinculado embora ao pragmatismo e às exigências do leitor de agora, vem tentando passos ainda mais audazes. Com escasso êxito, porque sem assunto não há leitores nem editores. E sem palavras a impressão encarece terrivelmente... Bester fez tentativas que ficaram inclusive, aquém do concretismo. Drode permanece no nouveau roman. Sturgeon, a despeito da psiótica, é ainda Gestaltpsychologie

Resta, naturalmente, Joyce. Ou, na poesia, Ezra Pound. Mas Joyce é excessivamente figurativo e Pound excessivamente tradicionalista. Para Joyce há uma chave, como nos logogrifos, depois do que tudo se resolve numa fabulação linear e numa dição discursiva¹. O mal de Finnegans Wake, por exemplo, é que ele é um labirinto, com a lógica minuciosa dos labirintos. (Devia ser como em Simak: quando Jenkins abre uma porta, ela dá para outro universo, e não para outro aposento.) 

Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo é pouco mais do que uma série de hipálages justapostas. Suas melhores soluções (e algumas são realmente boas) não se afastam do campo sintático. O leitor inconscientemente reata os cordéis e tudo volta a funcionar como nos romances convencionais. E Nelida Piñon fica sendo uma Clarice Lispector imatura, cujos pedacinhos tivessem sido misturados. 

Tudo depende, é claro, do que ela fizer depois. Outros já exploraram o nonsense, o stream of consciousness, o automatismo, a immediacy. Numerosas soluções foram propostas há mais de cinqüenta anos pelo Simbolismo, na prosa e no verso. Gertrud Stein já disse que uma rosa é uma rosa é uma rosa, Guimarães Rosa desvendou o reino onde as palavras crescem como plantas, se associam e dissociam infinitamente, Também Lewis Carroll, com sua travessia do espelho, que para Lewis Padgett é "pura lógica simbólica, magnificamente organizada a partir de dados arbitrários". 

Estamos vendo o mundo de hoje com olhos velhos, estamos fazendo uma literatura voltada para o passado, alimentando a Weltanschauung de um universo que não existe mais ou que pelo menos é demasiado estreito para conter a nossa realidade. Só os realizados, microfones da tradição, se assustam com o novo. Mas nenhum novo pode ser construido com as escórias ou as ruínas do velho. Como no poema de José Laurênio de Melo, é preciso dizer tudo "como se hoje fosse o primeiro dia da criação". 

Seria uma pena que o livro de Nelida Piñon fosse uma aventura sem conseqüências. 

1961

¹. Um ano depois escrevia Stephen Spender em The Listener ("Imagists and Realists", 18-10-1962): "Joyce invented a method for turning all experienced history and geography into an unending stream of inner consciousness expressed in idiomatic language. He had a method, but he did not really have a form". (O grifo é meu.) Conclui que melhor seria dizer que ele tem uma forma: unendingness. Pergunto: uma real unendingness ou uma garrafa de Klein, uma fita de Moebius, a porta entrada-e-saída do labirinto? Em qualquer caso, é sempre um método fechado em si mesmo utilizando uma forma contemporânea. 


in Situações da Ficção Brasileira, Cunha, Fausto – Paz e Terra – Rio de Janeiro, 1970

Comida: Omelete de amoras



Eu costumo contar esta antiga história àqueles que gostariam de fazer uma experiência com figos ou com vinho de Falerno, com uma sopa de borscht ou com um pranzo caprese. Era uma vez um rei, que se dizia todo-poderoso e dono de todos os tesouros da Terra, mas que, mesmo assim, não era feliz e ficava cada vez mais triste, de ano para ano. Um dia mandou chamar seu cozinheiro e lhe disse: "Tens me servido fielmente todo esse tempo, e coberto minha mesa com as mais apetitosas iguarias e, por isso, te tenho apreço. Mas agora desejo uma última prova de tua arte. Prepara-me a omelete de amoras, tal como a que saboreei há cinqüenta anos, em minha tenra mocidade. Naquela ocasião, meu pai estava em guerra contra seu terrível inimigo do Leste. Este venceu, e nós precisamos fugir. E, assim, fugimos dia e noite, meu pai e eu, até chegarmos a uma floresta sombria. Nós erramos por ela, e estávamos prestes a sucumbir de fome e cansaço quando, finalmente, nos depararmos com uma cabana. Lá morava uma velhinha, que amavelmente nos convidou para descansar, pondo-se a preparar alguma coisa no fogão. Pouco tempo depois, lá estava a omelete de amoras diante de nós. Porém, mal tinha eu levado à boca o primeiro pedaço e já me senti maravilhosamente reconfortado, e com renovada esperança no coração. Naquela ocasião, eu ainda era muito jovem, e por muito tempo não pensei mais nos benefícios daquela iguaria deliciosa. Mais tarde, porém, quando mandei procurá-la por todo o reino, não se encontrou nem a velha nem ninguém que soubesse preparar a omelete de amoras. Se atenderes a este meu último desejo, farei de ti meu genro e herdeiro do reino. Se, porém, não me satisfizeres, deverás morrer." E o cozinheiro respondeu: "Senhor, chamai imediatamente o carrasco. Pois mesmo conhecendo o segredo da omelete de amoras e todos os seus ingredientes, do simples agrião ao nobre tomilho; mesmo sabendo qual o verso que se deve dizer ao mexer a panela, e de que modo o molinilho de madeira de buxo deve ser girado, sempre para a direita, para que afinal não ponha a perder todo o nosso esforço — mesmo assim, Ó Majestade, terei de morrer. Pois, não obstante, minha omelete não agradará ao Vosso paladar. Pois como poderia eu temperá-la com tudo aquilo que Vós saboreastes naquela ocasião: o perigo da batalha e a cautela do perseguido, o calor do fogo e o aconchego do repouso, o presente desconhecido e o negro futuro." Assim falou o cozinheiro. O rei, porém, silenciou por um instante e, ao que consta, pouco depois desobrigou-o de seus serviços, regiamente carregado de presentes. 
1930


in Essen: Maulbeer-Omelette; Benjamin, Walter in G. S., IV, pp. 380-81

maio 09, 2009

A Evolução dos Idiotas



Os cientistas acreditam que os humanos são o grande resultado de bilhões de anos de evolução. Não posso explicar toda a teoria da evolução aqui, mas ela pode ser resumida assim. 

Teoria da Evolução (Resumo) 
Primeiro existiam algumas amebas. Amebas dissidentes se adaptaram melhor ao ambiente, tomando-se assim macacos. E aí veio a Gestão da Qualidade Total. 


Estou deixando de lado alguns detalhes, mas a teoria em si também tem alguns furos que é melhor não questionar. De qualquer forma, levamos muitos anos para chegar a este nível sublime de evolução. Não havia nada de mais neste ritmo descansado porque não tínhamos muito o que fazer, exceto sentar e esperar não ser comido por porcos selvagens. E então alguém caiu em cima de um galho pontudo e estava inventada a lança. Foi aí que começou a confusão. 

Eu não estava lá, mas aposto que alguém disse que a lança jamais substituiria as unhas como a melhor ferramenta numa briga. O pessoal do contra xingou os usuários das lanças chamando-os de "moog" e "blinth". (Isto foi antes de existir a marinha mercante, portanto ainda não se sabia xingar muito bem.) 

Mas não se falava em "diversidade" naquela época, e acho que o pessoal do "Diga Não às Lanças" acabou sendo mais "objetivo", se é que você está me acompanhando. 

A vantagem da lança é que quase todo mundo era capaz de entendê-la. Tinha uma característica básica: a ponta afiada. Nossos cérebros estavam perfeitamente equipados para este nível de complexidade. E não só os cérebros dos intelectuais — o homem comum também podia entender o que era uma lança. A vida era boa, salvo algumas pragas ocasionais e o fato de que a expectativa média de vida era de sete anos ... e que depois dos quatro você já estava rezando para morrer. Mas quase todo mundo se queixava de como as lanças eram confusas. 

De repente (em termos evolucionários), um dissidente chegou e construiu uma prensa tipográfica. Depois disso foi uma ladeira escorregadia. Duas piscadas mais tarde e estávamos trocando as baterias dos nossos laptops enquanto cruzávamos os céus em objetos metálicos brilhantes onde nos serviam amendoins e refrigerantes. 

Culpo o sexo e os jornais pela maioria dos nossos problemas hoje em dia. 

Esta é a minha lógica: só uma pessoa, entre um milhão de outras, é inteligente o bastante para inventar a imprensa. Portanto, quando a sociedade era formada apenas de algumas centenas de pessoas parecidas com macacos morando em cavernas, as chances de uma delas se tomar um gênio eram muito poucas. Mas as pessoas estavam sempre fazendo sexo, e a cada novo débil mental que vinha ao mundo, cresciam as chances de um dissidente sabichão escorregar da rede genética. Quando se tem vários milhões de pessoas correndo por aí e fazendo sexo sem nenhum planejamento, são muitas as chances de que alguma mamãe macaca grávida se agache no meio do mato e coloque para fora um dissidente inventor-de-prensa-tipográfica. 

Com as prensas, nosso destino estava traçado. Porque, então, todas as vezes que um novo dissidente esperto tinha uma idéia, ela era anotada e compartilhada com os outros. Todas as boas idéias podiam ser aprimoradas. A civilização explodiu. Nascia a tecnologia. A complexidade da vida cresceu geometricamente. Tudo ficou maior e melhor. 

Exceto os nossos cérebros. 

Toda a tecnologia que nos cerca, todas as teorias de gerenciamento, os modelos econômicos que prevêem e orientam o nosso comportamento, a ciência que nos ajuda a viver até os oitenta anos - tudo isso é criado por uma porcentagem minúscula de dissidentes espertos. O resto procura se manter à tona da melhor maneira possível. O mundo é complexo demais para nós. A evolução não acompanhou isso. Graças à prensa tipográfica, as pessoas espertas dissidentes conseguiram capturar seus gênios e comunicá-los sem ter que transmiti-los geneticamente. A evolução entrou em curto-circuito. Alcançamos o conhecimento e a tecnologia antes da inteligência. 
Somos um planeta com aproximadamente seis bilhões de bobos vivendo numa civilização que foi projetada por uns poucos milhares de dissidentes interessantemente inteligentes. 

Exemplo Real:

A Kodak introduziu no mercado uma câmera descartável chamada Weekender (a máquina dos finais de semana). Clientes ligaram para o serviço de apoio para perguntar se ela podia ser usada durante a semana também. 

Tenho certeza de que existem outras explicações plausíveis para as atividades dentro das empresas serem tão absurdas, mas não consigo encontrar nenhuma. Se conseguir, escreverei um outro livro. Prometo que continuarei procurando uma resposta até acabar o seu dinheiro. 


in O Princípio Dilbert; Adams, Scott – Ediouro – Rio de Janeiro, 1996
Ilustração: Andy Warhol – 100 Cans – Oil on canvas, 72 x 52", 1962

Presse



A imprensa subjugada sob o Consulado e o Império (1800-1814) 

Napoleão tinha uma consciência muito clara da importância da imprensa. Lia-a regularmente, repreendia constantemente os censores, inspirava artigos. A menor crítica deixava-o furioso: 
" ... Reprima um pouco mais os jornais; faça-os publicar bons artigos. Faça os redatores do Journal des Débats e do Publiciste compreenderem que já está próxima a hora em que, percebendo que já não me são úteis, eu os suprimirei com todos os outros, mantendo apenas um [...] O tempo da Revolução acabou, já não há em França senão um partido, e jamais permitirei que os jornais digam ou façam algo contra os meus interesses." (carta a Fouché, abril de 1805) 

Napoleão calou os opositores e empenhou-se em utilizar o poder dos jornais a serviço de sua propaganda na França e no exterior. 
"Sempre que houver uma notícia desagradável ao governo, ela não deverá ser publicada até que todos estejam tão certos da verdade que se torne desnecessário dizê-la, já que todos a conhecem." (A Fiévée, junho de 1805) 

A eficácia dessa propaganda era tão grande que Metternich escreveu em junho de 1808: "Para Napoleão as gazetas equivalem a um exército de 300 mil homens, que não vigiaria melhor o interior e assustaria menos o exterior do que meia dúzia de foliculários a seu serviço." 

Le Moniteur foi a peça mestra do seu sistema de propaganda. Jornal oficial desde dezembro de 1799, ele continha uma parte não-oficial composta de artigos de variedades, informações gerais e notícias diversas. "Fiz do Moniteur a alma e a força do meu governo, assim como meu intermediário junto à opinião pública tanto de dentro como de fora ... Era a palavra de ordem para os partidários do governo." (declaração em Santa Helena) 

O controle da imprensa tornava-se cada vez mais severo. A criação do diploma de tipógrafo e de livreiro forneceu ao poder novos meios de controle da imprensa. Em 1805 os censores foram integrados à redação dos jornais. O Journal des Débats permaneceu realista. Bertin, o primogênito, foi exilado em 1801 e em 1805 seu jornal, confiscado, recebeu o nome de Journal de l'Empire. Em 1811, apenas quatro jornais continuavam a ser publicados em Paris: Le Moniteur, o Journal de Paris, o Journal de l'Empire e a Gazette de France; a propriedade deles foi inteiramente confiscada. 

Na província, após a hecatombe de janeiro de 1800, ainda subsistiam 170 folhas em 1807: daí em diante, foi-lhes imposto que só tratassem de política através de extratos do Moniteur. A partir de agosto de 1810, só se permitiu a existência de uma única folha por departamento. Curiosamente, esse decreto provocou em certos departamentos pobres a criação de um jornal. A obrigação de publicar doravante os anúncios de certos autos do processo civil foi uma nova fonte de rendas para esses jornais. 


in História da Imprensa; Albert, P. e Terrou, F. – Martins Fontes – São Paulo, 1990

Modéstia



Quem fez da modéstia uma virtude esperava que todos passassem a falar de si próprios como se fossem idiotas. 
O que é a modéstia senão uma humildade hipócrita, através da qual um homem pede perdão por ter as qualidades e os méritos que os outros não têm?

Arthur Schopenhauer*

*O filósofo do pessimismo, Arthur Schopenhauer, nasceu na Polônia (1788 - 1860). Inimigo intelectual e pessoal de Hegel. Sua observação atenta do comportamento humano foi precurssora da psicanálise.


Ilustração – Ivald Granato

maio 08, 2009

Fundação de Jacareí

Os primeiros povoadores brancos e mamelucos do Vale do Paraíba paulista saíram diretamente de São Paulo. Vinham através de Mogi das Cruzes até a aldeia da Freguesia da Escada onde iam de canoa até a região de Jacareí, de onde seguiam em demanda ao sertão, a cavalo ou a pé. 

Sérgio Buarque de Hollanda informa que uma das razões da fundação de Jacareí, (Conceição do Paraíba), estava na dificuldade dos habitantes das roças, no entorno da região, de alcançarem Mogi das Cruzes, onde levavam as mulheres e filhos para os serviços religiosos. Era tão montanhoso e inóspito o caminho entre Mogi e Jacareí que era chamado, desde os primeiros povoadores, de os "sete pecados mortais". 

Em 1652, inicia-se a povoação de Nossa Senhora da Conceição de Jacareí por iniciativa de Antonio Afonso e seus filhos e agregados, tendo sido elevada a Vila em 22 de novembro de 1653. 

Cópia do documento da "Criação da Villa de Jacareí".

"Manoel Joaquim de Santana, Secretário da Câmara desta Villa de Jacarehy, na forma de Ley, etc. 
Certifico que revendo o Livro Foral da Criação desta Villa, nelle a folhas huma se acha escripto e lançado o Termo do Theor seguinte —  Aos vinte e hum dias do mês de Novembro de mil seiscentos e cincoenta e treis annos, em cazas do Capitão Diogo de Fontes, todos juntos os moradores de Paraiba aparecerão com o dito Capitão Diogo de Fontes, diante do Capitão mor Bento Ferrão Castello Branco, que prezente estava, e por elle foi dito e requerido ao dito senhor que sua Merce lhe mandasse fazer huma Villa, e levantar Pelourinhos em nome de sua Magestade, pois erão bastantes para o poder fazer, visto serem pobres e suas mulheres e filhos não poderem acudir à Villa de Mogy-Mirim, por ser o caminho muito longe e não terem passagem para poderem levar suas mulheres e filhos a ouvirem Missa juntamente por caresserem seus filhos de Agoa de Batismo, e que da parte de Sua Magestade, lhe requerião, o que visto pelo dito senhor seus requerimentos serem justos, lhe respondeo que se o Cittio fosse capás e sufficiente para se poder fazer Villa e levantar Pelourinho o faria, e de como assim requererão fis este termo que todos assignarão com o dito senhor, e eu Jorge de Souza Pereira, Tabelião do Publico Judicial e Nottas da Villa de Santa Anna das Cruzes de Mogy-Mirim, o escrevy por mandado do dito senhor Bento Ferrão Castelo Branco — Antonio Agostin — Domingos Afonço — Diogo de Fontes — Balthazar Nunes Dias — Jeronimo Pais — Luis Cabral de Tavora — Miguel Nunes Bicudo — Pascoal Donhate — Lourenço Luiz — Jacinto Pimentel — Lucas Fernandes Pinto — Manoel Preto — Domingos dos Reis — Salvador Correa Moreira — Manoel de Chaves Pereira — Ceriaco da Costa — Gaspar Gomes da Costa — Antonio de Alvarenga — Gaspar da Costa — Custodio de Chaves — Manoel Fernandes Agostin Domingos Correa Nunes — Luiz de Moura — Francisco Maciel — Jorge Gomes — Paulo da Costa — Manoel Rodrigues de Alvarenga — Antonio Gois — Antonio Velho Collaço — Henrique da Cunha — Izidro Colaço Villela — Domingos Lourenço Botelho — Gaspar Garcia — Manoel Collaço — João Ramalho, e logo pelo dito capitão mor em os vinte e dois dias do mês de novembro do dito ano, se pos a caminho com os ditos moradores e veio ver o Cittio e paragem que os tais pedirão se levantasse a dita Villa na forma atraz nomeada, e foi achado pelo dito Capitão mor ser o Cittio capás e ter largueza de terras para que a dita povoação fosse por diante em crescimento e aumento da Real Coroa de sua Magestade que Deos Guarde, e no cittio e paragem desta capitania, que hé do Marquez de Moçanto, Proprietário della, acrescentando-lhe suas redizimas, e visto isto pelo dito Capitão mor, requereo ao Capitão Diogo de Fontes, diante de todos que ali estavão e em nome delles e serviço de Deos e de sua Magestade, que se requeria nas mais Villas e o dito que se devia aos Donatarios, senhor delas, ao que o dito Capitão Diogo de Fontes, que com as mais gentes presentes se obrigavão a goardar inteiramente, o que tudo lhe foi proposto pelo dito Capitão Mor nesta conformidade: attentando em conceção destes moradores, foi levantado Pelourinho da dita Villa intitulada nossa senhora da Conceição da Paraiba, fincando a primeira pedra em nome de sua Magestade, de que tudo dou minha fé, estando prezente eu Jorge de Souza Pereira, Tabelião do Publico Judicial e Notas da Vila de Mogi-Mirim, que o escrevy, e por mandado do dito Capitão mor fui chamado para o tal cazo, que elle assignou comigo escrivão em os vinte e quatro dias de Novembro de mil seiscentos e cincoenta e tres — Bento Ferrão Castelo Branco — Jorge de Souza Pereira. E logo vindo o dito Capitão mor desta Capitania dito Bento Ferrão Castelo Branco de donde alevantou a Villa de Nossa Senhora da Conceição da Paraiba em pouzada de Antonio Agostin, onde todos se achavão prezentes ali morando, elle Capitão mor a elleição na conformidade que sua Magestade ordena, para que na dita Villa se Selebrassem Justiça de Sua Magestade, e ahi procederão a elleição de Juiz Ordinário, Vereadores e Procurador da Camara, que prestarão juramento e prometerão obdiencia ao Marques de Cascais, Donatario, e ao Alcaide mor desta Capitania de São Vicente, o qual lhes declarou os limites desta Villa, mandado meter marco da banda de São Francisco das Chagas de Taubaté, na ponta do Capão Groço, e pelo Rio abaixo athé Guacatuba, e da banda da Villa de Santa Anna das Cruzes de Mogi-mirim, no porto Velho aonde chamão as laranjeiras, correndo pelo Rio abaixo na mesma conformidade, rumo direito com o rumo rio acima, e para a banda do Certão quatro legoas, e tudo lhe foi proposto pelo dito Capitão mor desta Capitania em prezença de mim Tabelião, que dou minha fé, ficando este assento na Camara desta Villa de Nossa Senhora da Conceição da Paraiba, de que fis este termo que o dito Capitão mor e eu Jorge de Souza Pereira, Tabelião do Publico Judicial e Notas da Villa de Santa Anna das Cruzes de Mogi-Mirim, o escrevy por mandado do dito Capitão mor, Bento Ferrão Castello Branco". 
 

Jardim do Largo da Matriz em reforma, no ano de 1939, quando foi demolido este artístico coreto. Foto do Sr. Odilon de Siqueira.

De acordo com Eugênio Egas, a denominação Jacaré-ig (Rio de Jacarés), transformava-se mais tarde, pelo uso popular, em Jacareí. Em 1653, a povoação foi elevada a Vila e, pela lei nº 17 de 3 de abril de 1849, tornou-se cidade. Na época de sua criação a extensão de Jacareí era de 6 a 7 léguas de comprimento. 

A vila de Nossa Senhora da Conceição da Parahyba, Jacareí, já possuia, em 1695, algumas casas cobertas de telha. Seu núcleo inicial parece ter sido o local da igreja do Avareí, porém seu arredor era muito alagadiço, o que fez com que um novo núcleo passasse a se desenvolver no local do largo da matriz. As terras dadas à D. Diogo de Faro e Souza, que começaram a ser povoadas em 1652, foram-se transformar, a partir do início do século XIX, na cidade de Jacareí com suas estreitas e tortuosas ruas nascendo do largo da matriz. 


in Nossa Senhora da Conceição de Jacarehy; Pesquisa e texto: Prof. Ivonne Tessin Weis e Prof. Benedito Vianna dos Santos – Edição: Indústrias de Papel Simão S. A. (Assessoria de Relações Públicas) – s.l., 1990

maio 07, 2009

O Diabo

A carta do Diabo nos mostra um sátiro — criatura metade homem, metade bode — dançando ao som da gaita que está segurando com a mão esquerda. Na mão direita, segura dois fios, amarrados ao pescoço de duas pessoas de tamanho menor.  Essas pessoas — um homem e uma mulher — também têm chifres como os do sátiro e, embora tenham as mãos e os pés livres para dançar, estão presos às cadeias do medo e do fascínio pela música. A cena tem lugar dentro de uma gruta escura. 

Na mitologia, o bode está associado à libertinagem, sendo considerado um animal lascivo e indecente. Mas, ele também é o bode expiatório, sobre o qual as outras pessoas projetam o próprio interior — muitas vezes imoral e indecente — para poderem se sentir limpas e decentes. Assim, Pã, o Diabo, é o bode expiatório, que leva a culpa por todas os problemas de nossa vida. 
 

 
A caverna escura e sem saída indica que Pã habita o ponto mais inatingível do inconsciente. Apenas e tão somente uma grande crise pode derrubar ao paredes desse aposento.  As figuras que dançam, na realidade, são livres se o desejarem; pois  as mãos estão soltas para retirar as correntes a qualquer momento. A servidão ao Diabo é uma questão que o consciente pode libertar. 

E agora nos encontramos com Pã, a quem os gregos adoravam e chamavam de o Grande Todo, deus dos pastores e dos rebanhos. Segundo a mitologia, Pã era filho de Hermes e da ninfa Dríope. Dizem que era tão feio ao nascer — o corpo inteiramente recoberto de pêlos, metade humano, metade bode, chifres na testa, barba e cauda — que a mãe, em desespero e medo, fugiu para bem longe. Hermes o levou para o Olimpo para o divertimento dos deuses. Pã freqüentava os pastos e os bosques da Arcádia e era a personificação da fertilidade e do espírito fálico e selvagem da natureza indomada. Entretanto, ocasionalmente era gentil com os homens, cuidando dos rebanhos e das colméias. Tomava parte nos festejos das ninfas dos montes e auxiliava os caçadores a encontrarem suas presas. Dizem que certa ocasião perseguiu a casta ninfa Siringe até o rio Ládon. Ali chegando, para fugir dos abraços de Pã, a ninfa se transformou num feixe de caniços. Como não a encontrasse, cortou os caniços e inventou a flauta de sete tubos, que desde então foi chamada com o nome da famosa virgem ou como a flauta de Pã. 

É de seu nome que deriva a palavra pânico, pois o irreverente deus se divertia assustando os caminhantes solitários das florestas com gritos assustadores. Embora desprezado pela maioria das divindades, quase todos os outros deuses exploravam seus poderes. ApoIo, o deus-sol, conseguiu obter de Pã a arte da profecia e Hermes roubou-lhe uma flauta que deixara cair certa vez, dizendo-se o autor da invenção, para em seguida vendê-la a ApoIo. Foi dessa maneira que o brilhante deus-sol recebeu os dons da música e da profecia ilicitamente do deus da Natureza, feio e animalesco. 


No psicológico, Pã, o Diabo, representa a servidão aos instintos da natureza. Uma vez que o deus era adorado dentro de grutas e cavernas escuras que sempre causavam medo, sua imagem dentro de nós sugere algo que tanto podemos temer como nos encantar, ou seja, os impulsos sexuais e animais, que consideramos maus, justamente por sua natureza compulsiva. Desde o aparecimento da era cristã, o deus Pã foi associado à figura do Diabo, representado por chifres de bode e olhar malicioso, tendo sido desprezado por todos os segmentos religiosos da mesma forma que ApoIo o desprezou na mitologia. 

Em sua obra, Plutarco conta que, ao largo das ilhas do mar Egeu, nos tempos do imperador Tibério, a tripulação de um navio ouviu uma estranha voz que gritou por três vezes: "O grande Pã morreu". Em seguida, ouviram-se lamentos e gemidos. Nesse exato momento, o cristianismo nascia na Judéia. 

Entretanto, a presença desta carta entre os Arcanos Maiores do Tarô indica que Pã não morreu, mas que na realidade foi relegado aos confins do nosso inconsciente, representando tudo aquilo que tememos, odiamos e desprezamos em nós mesmos e que, ao mesmo tempo, nos escraviza por meio desses mesmos temores e desgostos. 
A questão da vergonha do próprio corpo e dos impulsos sexuais, especialmente aqueles que a psicanálise tanto se empenha para trazer à luz nesses últimos cem anos — fantasias incestuosas, taras com relação às funções fisiológicas e excrementos, complexo de inferioridade por causa da aparência, etc. —, é a questão que Pã, o Diabo, personifica. Até mesmo a pessoa mais liberada sexualmente pode experimentar essa secreta vergonha do próprio corpo. Podemos encontrar uma tonalidade romântica e nobre na ira do leão da carta da Força, ou mesmo no ímpeto dos cavalos na carta do Carro. Ao contrário, na carta de Pã essa tonalidade romântica e nobre não ocorre. Entretanto, na mitologia grega, Pã não era mau, mas simplesmente selvagem, amoral e natural. É a paralisia dos humanos — escravos do medo e do fascínio — que cria o problema. A carta do Diabo implica em bloqueios e inibições quase sempre de ordem sexual — que surgem de nossa falta de conhecimento e de compreensão de Pã. Embora feio, ele é o Grande Todo — a vida primordial do corpo propriamente dita, amoral, cruel e, não obstante, divina. A energia que se gasta mantendo esse diabo em sua gruta escondida é vergonhosa, é a força que se perde da personalidade, mas que pode ser liberada com grande efeito, caso o indivíduo esteja disposto a encarar Pã de frente. 

E assim o Louco precisa se confrontar com muita humildade frente aos aspectos mais mesquinhos e vergonhosos da própria personalidade, caso contrário ficará escravo do próprio medo para sempre. Às vezes, para ocultar esse segredo vergonhoso, ele se finge de superior e projeta a própria bestialidade nos outros, conduzindo ao preconceito, à zombaria e até mesmo à condenação de indivíduos ou raças que a ele são ruins. 


No  divinatório, o Diabo indica a necessidade de confrontação com tudo o que está oculto e vergonhoso na base da personalidade. O Louco precisa se libertar pelo reconhecimento e pela aceitação humilde do Pã que traz dentro de si, pois, uma vez liberado o poder criativo — preso às amarras do próprio medo e do baixo nível de auto-estima —, ele poderá chegar até o âmago do labirinto e encarar a própria escuridão como a escuridão natural de seu corpo, para voltar a ser o que sempre foi, ou seja, apenas e tão somente um ser natural. 


in O Tarô Mitológico; Sharman-Burke, Juliet e Greene, Liz – Siciliano, São Paulo, 1992
Ilustração de Tricia Newell, 1988

maio 06, 2009

ABREV



IBC 
Instituto Benjamin Constant.
Instituto Brasileiro do Café.
International Broadeasting Corporation (Corporação Internacional de Radioemissão). 

IBCCA 
Instituto Brasileiro de Couro, Calçados e Afins. 

IBCT 
Indústria Brasileira de Cápsulas Telefônicas. 

IBDA 
Instituto Brasileiro de Direito Agrário. 

IBDCCB 
Instituto Brasileiro de Direito Comercial Comparado e Biblioteca Túlio Ascarelli. 

IBDF 
Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal. 

IBDPC 
Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil. 

IBE 
Belém (ILS). 
Ibéria. 
Instituto Brasileiro de Economia. 
Instituto Brasileiro de Educação. 
Instituto de Biologia do Exército. 

IBEAA 
Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos. 

I-beam 
longarina em I, viga em duplo-T, viga em I, viga laminada (eng). section: viga em I (eng), seção de viga em I (eng). 

IBEC 
Instituto Brasileiro de Estudos Cibernéticos. 
Instituto Brasileiro de Extensão Cultural. 

IBECC 
Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura. 

IBEFAR 
Instituto Brasileiro de Especialidades Farmacêuticas. 

IBEM 
Importadora Brasileira de Equipamentos Médicos. 

IBEMEP 
Instituto Brasileiro de Estudos sobre o Desenvolvimento da Exportação de Material Elétrico Pesado. 

IBEP 
Instituto Brasileiro de Edições Pedagógicas. 

IBEPEGE 
Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas de Gastroenterologia. 

IBEPOG 
Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas de Obstetrícia e Ginecologia. 

iber 
ibérico, ibero. 

IBERIA 
Líneas Aéreas de Espana SA. 

IBES 
Instituto Brasileiro de Educação Social. 
Instituto de Bem-Estar Social Espírito Santense. 

IBESA 
Indústria Brasileira de Embalagens. 

IBESP 
Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e política. 

IBEST 
Incorporadora Brasileira de Empreendimentos Sociais Turísticos. 

IBEU 
Instituto Brasil-Estados Unidos. 

IBEW 
International Brotherhood of Electrical Workers (Fraternidade Internacional de Trabalhadores em Eletricidade. 

IBF 
Instituto Brasileiro de Filosofia. 


in Dicionário de Siglas e Abreviaturas (Descodificação); Antas, Luiz Mendes –Traço Editora – São Paulo, 1984

maio 05, 2009

1808



O historiador Tobias Monteiro acrescenta um detalhe pitoresco nesses passeios: o ritual que envolvia as necessidades fisiológicas do rei. Segundo ele, à frente da comitiva ia um moço de cavalariça, a que o povo chamava de “toma largas” — talvez porque abria espaço à passagem do rei ou por usar vestimentas de abas enormes. Esse vassalo montava uma besta, de cuja sela pendiam dois alforjes. Num ia a merenda de D. João VI. No outro, um penico e uma armação composta de três peças que funcionava como um vaso sanitário portátil, para ser usado em campo aberto. A certa altura do passeio, o rei murmurava alguma ordem, o moço descia da mula e montava o equipamento. “Então”, acrescenta o historiador, “o rei descia da carruagem e dele aproximava-se o camarista, que lhe desabotoava e arriava os calções. Diante dos oficiais e outras pessoas da comitiva, até da princesa Maria Teresa, sua filha predileta, quando esta o acompanhava, sentava-se beatamente, como se ninguém lhe estivesse em torno. Satisfeito o seu desejo, vinha um criado particular limpá-lo e de novo chegava o camarista, para ajudá-lo a se vestir.”18

Cumprida essa etapa, D. João retomava o passeio, até chegar a hora da merenda. Além da comida guardada no alforje do moço de cavalariça, o rei levava também um estoque extra de galinhas assadas e desossadas. Guardava os pedaços na algibeira do seu casacão encardido e ia comendo enquanto contemplava a paisagem ou parava para conversar com as pessoas que o saudavam pelo caminho. À noite, recebia seus súditos para o beija-mão. Ia se deitar por volta das 23h.19

Tobias Monteiro tem mais uma informação curiosa a respeito da intimidade do rei. Ele conta que os quartos do Palácio de São Cristóvão se abriam para uma varanda. D. João VI dormia sozinho num deles. Numa sala contígua, que dava para o interior do edifício, costumava receber visitas e despachar com ministros e oficiais do governo. Como essa sala de reuniões era o único acesso ao quarto do rei, os criados do palácio também tinham de passar por ela quando, pela manhã, precisavam esvaziar os penicos usados durante a noite por D. João. Dependendo da hora, essa tarefa era executada enquanto o monarca recebia alguns de seus convidados. Para evitar constrangimentos, os vasos eram cobertos com uma tampa de madeira, emoldurada por uma pequena cortina de veludo encarnado. “Mas esse fechamento era imperfeito e deixava escapar os elementos voláteis, que denunciavam seu conteúdo”, conta o indiscreto Monteiro.20

Pode-se dizer que, a esta altura, nem tudo cheirava bem na corte do Rio de Janeiro. Mas este nem de longe era o maior dos problemas.

18. Tobias Monteiro, História do Império, p. 95.
19. Pedro Calmon, O rei do Brasil, p. 227.
20. Tobias Monteiro, História do Império, p. 96. Monteiro baseia seu relato nas descrições de Américo Jacobina Lacombe, que Almeida Prado, em Thomas Ender, p. 102, diz ser “mexeriqueira” e não confiável como fonte.


1808 : como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil; Gomes, Laurentino – São Paulo: Planeta do Brasil, 2007. p. 303.
Ilustração (detalhe):  D. João VI – Maurício José do Carmo Sendim, 1786-1870 – Lisboa – Lithographia Regia – 35x26,2 cm. 

maio 04, 2009

Musée D'Orsay

Nadar (1820 — 1910)
Baudelaire Seated on a Louis XIII Chair, 1855. 
Unique salt print from destroyed negative, (21.2 x 16.4 cm).
 
Louis-Adolphe Humbert de Molard (1870 — 1874)
Louis Dodier (Humbert de Molard's butler) as a Prisioner, 1847.
Daguerreotype, (11.5 x 15.5 cm).
 
Clarence White (1871 — 1925).
The Kiss, 1904. Platinum print, (24.7 x 14.8 cm).


in Treasures of the Musée D'Orsay; Cachin, Françoise – Abbeville Publishing Group – New York, s.d.

1930



Dia 5 de outubro

Um contratempo: Minas luta com escassez de munição e pede nosso auxílio. Não contava com a resistência do 12º Regimento de Belo Horizonte. Prometemos providenciar, mas, por onde? Examina-se o problema grave. 

Uma boa notícia: a adesão das forças da 5ª Região Militar, Curitiba. Recebo telegrama do major Plínio Tourinho, meu antigo condiscípulo da Escola Militar* e oficial do estado-maior da Região. 

Os oficiais do 8º Regimento, que aderiu à revolução, declaram que não são partidários desta e apenas obedeceram a seu comandante, tenente-coronel Galdino Esteves. Esses oficiais são recolhidos a bordo do vapor [...],¹ onde se acham os outros oficiais contrários ao movimento. As guarnições federais do estado foram aderindo; faltavam apenas Santo Ângelo e São Borja, que parlamentavam. 

Reintegrei nas funções de secretário do Interior Osvaldo Aranha, o chefe revolucionário que preparou e executou o plano revolucionário no estado, articulando-o com os elementos do exterior. 

As notícias do Paraná determinaram-nos a acelerar a remessa de tropas selecionadas para aquela zona, a fim não só de amparar os companheiros, como de apressar o desfecho da ação que se desenhava evidente, pelo choque com as tropas do governo, nesse estado ou em São Paulo. João Alberto seguiu, levando pequena força da capital e recebendo vários contingentes em sua passagem ao longo da via férrea. Houve grande entusiasmo no embarque. Seguiram daqui cerca de quinhentos homens. Noticia-se que os comunistas tentaram um golpe de força em Itaqui, prendendo o intendente e o comandante do Grupo de Artilharia. Soube-se depois que não eram comunistas, e sim oficiais do próprio grupo que tentaram uma reação. Foram, porém, repelidos e emigraram para a Argentina. 

Todas as guarnições militares já aderiram ao movimento, faltando apenas a de São Borja. Correm versões sobre a sublevação de parte da polícia de São Paulo e do Forte de Copacabana. Já de muito prevenido pelos boatos tão comuns nestas épocas de exaltação, não lhes dou maior crédito. 

Soube-se que os senadores Paim, Vespúcio, e os deputados Penafiel, Barbosa Gonçalves e Mascarenhas votaram a favor do estado de sítio no Rio Grande! Por enquanto não há quem possa executá-la. Foram apreendidos alguns informes telegráficos transmitidos via Western. Deles se verifica que o senador Paim, em combinação com o ministro da Guerra,² está mandando fazer espionagem no seu estado, por intermédio de Santa Catarina, bem como aliciar antigos políticos que com ele serviram em lutas anteriores, a fim de organizar um movimento de reação em favor do Catete. Foram tomadas medidas policiais e incumbido o general Valdomiro Lima de organizar as forças dos municípios de Lagoa Vermelha, Vacaria e Bom Jesus para uma forte coluna de invasão a Santa Catarina. 

Nas forças federais do interior, geralmente os oficiais superiores não aderiram ao movimento. Acharam mais conveniente entregar-se à prisão. Houve ordem do chefe do estado-maior para que fossem trazidos a esta capital, para serem recolhidos aos navios onde estavam seus outros colegas. 

À tarde, chegam notícias de que o Regimento de São Borja se retirava pelo rio Uruguai, que transpôs, indo entregar-se, e às armas de que dispunha, em país estrangeiro. Triste conduta. 

À noite, chegam excelentes notícias da Paraíba: Juarez Távora à frente de 8 mil homens, queda de Recife, Natal, marcha sobre Alagoas e Ceará, tropas paraíbas de um moral magnífico. Minas aperta o cerco ao 12º Regimento em Belo Horizonte: dos dois aviões mandados para bombardear a capital mineira, um é abatido e o outro adere ao movimento. Perturbações em Goiás, Mato Grosso, São Paulo e Rio. Sente-se que a Revolução está triunfante. Nada poderá detê-la. 

Recebo carta do dr. Borges de Medeiros, com algumas recomendações partidárias para que o Partido Republicano tenha função preponderante na luta. Recebo comissões de solidariedade das sociedades de engenharia e dos advogados, além de contínuas demonstrações particulares. O entusiasmo, o espírito de decisão continuam admiráveis no povo rio-grandense. 

* Escola Tática e de Tiro de Rio Pardo. 
¹ Comandante Ripper 
² Nestor Sezefredo dos Passos, ministro da guerra do governo Washington Luís


in Getúlio Vargas: Diário – apresentação de Celina Vargas do Amaral Peixoto; Edição de Leda Soares – Siciliano – São Paulo, 1995

maio 03, 2009

Caiçuma


Aldeia Nova Esperança. Povo Yawanawá. Acre.

A fabricação de bebidas fermentadas iniciou-se com a própria humanidade na criação da vida ritualizada. Os ingredientes, o modo de preparar e a maneira de tomar variam entre cada grupo étnico. Entre os índios do sul da América, o uso ritual e social das bebidas fermentadas é ligada ao sagrado, ao divertimento e, em certos casos, à política.

A caiçuma é uma bebida alcoólica dos indígenas consumida em festas. Sua produção, apesar de rudimentar, possui etapas fundamentais distintas: preparação das matérias-primas, mistura, inserção de aditivos e fermentação. 

No seu processo de produção artesanal, as mulheres da comunidade cozinham a macaxeira, depois se reúnem em uma “Tocha” para a mastigagem, colocando a mistura em um recipiente feito de argila. 

O produto obtido do processo de fermentação apresenta sabor levemente adocicado, encorpado, de neutro a levemente alcalino, com cor, tom e aspecto semelhante ao leite.

Com o passar do tempo, a caiçuma sofre algumas modificações até se transformar na caissuma, agora realizada sem o cozimento. Atualmente, vem sendo estudada sua obtenção a partir de frutos da região amazônica.


Fotografia de Antonio Lino

Detalhe




in Anatomia dentária; França, Maria Ignez T. – Barros, Fischer & Associados – São Paulo, 2004 – Ilustração de Vincent Perez

maio 01, 2009

Planta Mágica



A história do fumo no Brasil começa muito cedo, bem antes da chegada dos europeus. A planta nasceu provavelmente nos vales orientais dos Andes bolivianos e se difundiu no atual território brasileiro através das migrações indígenas, sobretudo Tupi-Guarani.

Havia vários tipos de fumo mas apenas duas plantas eram usadas e cultivadas: a Nicotiana Tabacum e a Nicotiana Rustica.

O fumo para os índios brasileiros tinha um caráter sagrado e como a mandioca, o milho e muitas outras plantas, uma origem mítica. Seu uso era geralmente limitado aos ritos mágico-religiosos e como planta medicinal. Por isso era reservado unicamente aos pajés.

O fumo era utilizado para a iniciação dos pajés e nas cerimônias tribais. Por meio dele, o pajé entrava em transe no qual contactava com os deuses, espíritos, almas dos mortos, ou ainda predizia o melhor momento para ir à caça, viajar ou atacar o inimigo. A fumaça do fumo era considerada purificadora: protegia dos maus espíritos o jovem guerreiro, a roça, a safra ou a comida. Como planta medicinal curava as feridas, as enxaquecas ou as dores de estômago.

Embora existissem seis usos diferentes para o fumo entre os índios da América do Sul, (comida, bebida, mascado, chupado, em pó e fumado) o hábito de fumar era o mais relevante. Era fumado num tipo de charuto chamado cangueira: folhas de fumo secas enroladas numa folha de milho ou palmeira, uma forma de uma vela cujas dimensões iam de seis a sessenta centímetros.

Quando da chegada dos europeus, o fumo era de uso comum nas tribos Tupinambá e cultivado em toda a costa do Brasil.

No início de novembro de 1492, os companheiros de Cristóvão Colombo viram pela primeira vez os índios a fumar. Começou então a história de uma formidável expansão: em apenas um século o fumo passou a ser conhecido e usado no mundo inteiro, expandindo-se em duas maneiras.

A primeira através dos marinheiros, para quem o fumo era um bom meio de passar o tempo durante os longos meses que duravam as viagens. Eles se habituaram a fumar e também a mascar, introduzindo assim o costume nas camadas populares dos países europeus, da África e do Oriente. O fumo então usado era unicamente o de corda.

A segunda maneira já revela a importância do Brasil na difusão do fumo pelo mundo. Em 1530, após a expedição de Martin Afonso de Souza no Sul do país, um donatário português, Luiz de Góis, em 1542, levou a planta para Portugal. Por seu aspecto ornamental (como planta exótica) e por suas virtudes medicinais, foi cultivada no quintal da infanta D. Maria, e em 1560, Jean Nicot, então embaixador da França em Portugal, a conheceu. Ouvindo dizer que a planta curava enxaquecas, das quais padecia a rainha da França, Catarina de Médici, ele a enviou a Paris. A rainha começou a pitar e imediatamente foi imitada pelos nobres da sua corte e logo pelos das cortes européias, dando nascimento ao mercado do fumo em pó, o rapé.

O fumo, de planta mágico-religiosa dos índios, passou a ser um gênero comercial das colônias européias e, mais particularmente, das Antilhas, da Virgínia (só a partir de 1612) e evidentemente do Brasil.


in O Fumo Brasileiro no Período Colonial; Nardi, Jean Baptiste – Brasiliense – São Paulo, 1996

Pouco me importa



Pouco me importa.
Pouco me importa o que?
Não sei: pouco me importa.


in Poemas Inconjuntos; Caeiro, Alberto