maio 07, 2009

O Diabo

A carta do Diabo nos mostra um sátiro — criatura metade homem, metade bode — dançando ao som da gaita que está segurando com a mão esquerda. Na mão direita, segura dois fios, amarrados ao pescoço de duas pessoas de tamanho menor.  Essas pessoas — um homem e uma mulher — também têm chifres como os do sátiro e, embora tenham as mãos e os pés livres para dançar, estão presos às cadeias do medo e do fascínio pela música. A cena tem lugar dentro de uma gruta escura. 

Na mitologia, o bode está associado à libertinagem, sendo considerado um animal lascivo e indecente. Mas, ele também é o bode expiatório, sobre o qual as outras pessoas projetam o próprio interior — muitas vezes imoral e indecente — para poderem se sentir limpas e decentes. Assim, Pã, o Diabo, é o bode expiatório, que leva a culpa por todas os problemas de nossa vida. 
 

 
A caverna escura e sem saída indica que Pã habita o ponto mais inatingível do inconsciente. Apenas e tão somente uma grande crise pode derrubar ao paredes desse aposento.  As figuras que dançam, na realidade, são livres se o desejarem; pois  as mãos estão soltas para retirar as correntes a qualquer momento. A servidão ao Diabo é uma questão que o consciente pode libertar. 

E agora nos encontramos com Pã, a quem os gregos adoravam e chamavam de o Grande Todo, deus dos pastores e dos rebanhos. Segundo a mitologia, Pã era filho de Hermes e da ninfa Dríope. Dizem que era tão feio ao nascer — o corpo inteiramente recoberto de pêlos, metade humano, metade bode, chifres na testa, barba e cauda — que a mãe, em desespero e medo, fugiu para bem longe. Hermes o levou para o Olimpo para o divertimento dos deuses. Pã freqüentava os pastos e os bosques da Arcádia e era a personificação da fertilidade e do espírito fálico e selvagem da natureza indomada. Entretanto, ocasionalmente era gentil com os homens, cuidando dos rebanhos e das colméias. Tomava parte nos festejos das ninfas dos montes e auxiliava os caçadores a encontrarem suas presas. Dizem que certa ocasião perseguiu a casta ninfa Siringe até o rio Ládon. Ali chegando, para fugir dos abraços de Pã, a ninfa se transformou num feixe de caniços. Como não a encontrasse, cortou os caniços e inventou a flauta de sete tubos, que desde então foi chamada com o nome da famosa virgem ou como a flauta de Pã. 

É de seu nome que deriva a palavra pânico, pois o irreverente deus se divertia assustando os caminhantes solitários das florestas com gritos assustadores. Embora desprezado pela maioria das divindades, quase todos os outros deuses exploravam seus poderes. ApoIo, o deus-sol, conseguiu obter de Pã a arte da profecia e Hermes roubou-lhe uma flauta que deixara cair certa vez, dizendo-se o autor da invenção, para em seguida vendê-la a ApoIo. Foi dessa maneira que o brilhante deus-sol recebeu os dons da música e da profecia ilicitamente do deus da Natureza, feio e animalesco. 


No psicológico, Pã, o Diabo, representa a servidão aos instintos da natureza. Uma vez que o deus era adorado dentro de grutas e cavernas escuras que sempre causavam medo, sua imagem dentro de nós sugere algo que tanto podemos temer como nos encantar, ou seja, os impulsos sexuais e animais, que consideramos maus, justamente por sua natureza compulsiva. Desde o aparecimento da era cristã, o deus Pã foi associado à figura do Diabo, representado por chifres de bode e olhar malicioso, tendo sido desprezado por todos os segmentos religiosos da mesma forma que ApoIo o desprezou na mitologia. 

Em sua obra, Plutarco conta que, ao largo das ilhas do mar Egeu, nos tempos do imperador Tibério, a tripulação de um navio ouviu uma estranha voz que gritou por três vezes: "O grande Pã morreu". Em seguida, ouviram-se lamentos e gemidos. Nesse exato momento, o cristianismo nascia na Judéia. 

Entretanto, a presença desta carta entre os Arcanos Maiores do Tarô indica que Pã não morreu, mas que na realidade foi relegado aos confins do nosso inconsciente, representando tudo aquilo que tememos, odiamos e desprezamos em nós mesmos e que, ao mesmo tempo, nos escraviza por meio desses mesmos temores e desgostos. 
A questão da vergonha do próprio corpo e dos impulsos sexuais, especialmente aqueles que a psicanálise tanto se empenha para trazer à luz nesses últimos cem anos — fantasias incestuosas, taras com relação às funções fisiológicas e excrementos, complexo de inferioridade por causa da aparência, etc. —, é a questão que Pã, o Diabo, personifica. Até mesmo a pessoa mais liberada sexualmente pode experimentar essa secreta vergonha do próprio corpo. Podemos encontrar uma tonalidade romântica e nobre na ira do leão da carta da Força, ou mesmo no ímpeto dos cavalos na carta do Carro. Ao contrário, na carta de Pã essa tonalidade romântica e nobre não ocorre. Entretanto, na mitologia grega, Pã não era mau, mas simplesmente selvagem, amoral e natural. É a paralisia dos humanos — escravos do medo e do fascínio — que cria o problema. A carta do Diabo implica em bloqueios e inibições quase sempre de ordem sexual — que surgem de nossa falta de conhecimento e de compreensão de Pã. Embora feio, ele é o Grande Todo — a vida primordial do corpo propriamente dita, amoral, cruel e, não obstante, divina. A energia que se gasta mantendo esse diabo em sua gruta escondida é vergonhosa, é a força que se perde da personalidade, mas que pode ser liberada com grande efeito, caso o indivíduo esteja disposto a encarar Pã de frente. 

E assim o Louco precisa se confrontar com muita humildade frente aos aspectos mais mesquinhos e vergonhosos da própria personalidade, caso contrário ficará escravo do próprio medo para sempre. Às vezes, para ocultar esse segredo vergonhoso, ele se finge de superior e projeta a própria bestialidade nos outros, conduzindo ao preconceito, à zombaria e até mesmo à condenação de indivíduos ou raças que a ele são ruins. 


No  divinatório, o Diabo indica a necessidade de confrontação com tudo o que está oculto e vergonhoso na base da personalidade. O Louco precisa se libertar pelo reconhecimento e pela aceitação humilde do Pã que traz dentro de si, pois, uma vez liberado o poder criativo — preso às amarras do próprio medo e do baixo nível de auto-estima —, ele poderá chegar até o âmago do labirinto e encarar a própria escuridão como a escuridão natural de seu corpo, para voltar a ser o que sempre foi, ou seja, apenas e tão somente um ser natural. 


in O Tarô Mitológico; Sharman-Burke, Juliet e Greene, Liz – Siciliano, São Paulo, 1992
Ilustração de Tricia Newell, 1988

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