maio 21, 2009

Lobato



Muda-se para a Argentina em 1946, não sem antes reafirmar a velha ojeriza pelo modernismo nas artes plásticas: manifesta-se contrariamente à fundação de um Museu de Arte Moderna em São Paulo, lançando mão de argumentos muito parecidos com aqueles que, em 1917, usara contra Anita Malfatti. 

Suas esperanças, nesse momento, são todas postas na Argentina, onde suas obras são traduzidas e onde ele funda com amigos a editora Acteon. Lá, escreve mais um livro, com o pseudônimo de Miguel Garcia: La nueva Argentina, obra que defende o plano qüinqüenal, texto corrido e didático, onde um pai — fazendo de D. Benta — explica aos filhos a plataforma (peronista) que transformará a Argentina num país forte e feliz. 

Mas o exílio voluntário lhe pesa. Sente falta dos amigos, planeja novas histórias infantis e acaba por regressar ao Brasil. E na bagagem do Lobato que em 1947 desembarca em São Paulo parece vir aprendida uma importante lição: O Lobato de agora parece compreender mais amplamente a natureza do capitalismo, aperfeiçoando a compreensão que, já em 1935, no auge da campanha do petróleo, num artigo intitulado "os grandes crimes contra os povos", o fazia referir-se ao "capitalismo anônimo internacional que paira sobre o mundo como tremendo Pássaro Roca controlador dos governos fracos [que] não passam de bonecos nas mãos do Poder Oculto do Capitalismo Internacional Anônimo do qual até agora só um país se salvou: A Rússia". 

Antes ainda de viajar para a Argentina, a mesma compreensão inspirou-lhe em 1944 o desligamento da União Cultural Brasil-Estados Unidos justificada numa carta (Cartas escolhidas) onde confessa seu desengano ao ter verificado que "os americanos fazem a maior das guerras ao fascismo na Europa e dão todo o apoio moral e material ao mesmo fascismo aqui". 


desde seus conservadores anos 20. A partir dos anos 40, com breves interregnos (como quando, por exemplo, Lobato não admite a aliança dos comunistas com Vargas) as coincidências entre as posições de Lobato e as do PCB vão se estreitando e se multiplicando. 

Muito embora Lobato jamais tenha se filiado ao PCB, é convidado, em 1945 a integrar a chapa dos comunistas, o que ele recusa alegando recentes (e verdadeiros) problemas de saúde. Mas não se furta a fazer uma saudação a Prestes, lida no comício de 15.7.1945 no Pacaembu. Manifestação de simpatia que se repete três anos depois, em 1948 quando, regressado da Argentina, envia o texto O rei vesgo para ser lido no comício de protesto pela cassação dos parlamentares do PCB. 

É no bojo desse realinhamento ideológico que a figura do caipira ressurge pela terceira e última vez na obra de Lobato, agora numa perspectiva que supera integralmente a ótica patronal e paternalista que orientava os textos de "Velha praga", "Urupês" e "Jeca Tatuzinho". 

Trata-se de Zé Brasil, livreto que representa uma autocrítica ao jovem Lobato que em 1914 não soubera entender a dimensão econômica do problema agrário brasileiro e que nos anos 20, no bojo das campanhas pela saúde pública, avança a questão, mas não chega a atinar que o problema das condições de saúde mascarava outros, mais concreto, da infraestrutura brasileira. Nesta última versão, a de 1947, o Jeca se metaforiza em Zé Brasil, camponês sem terra e cuja única esperança reside no Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos Prestes. 

Zé Brasil é o último texto de Lobato, que morre um ano depois de sua publicação, no auge da fama. 

Ao retomar da Argentina, Lobato não tem onde morar. Vai ficando provisoriamente em hotéis, enquanto não acha onde instalar-se definitivamente. E crê ser também provisoriamente que se instala com a mulher e a filha no último andar de um prédio na paulistaníssima Rua Barão de Itapetininga, onde funcionava a Editora Brasiliense. 

De um terraço na cobertura, contempla a sua São Paulo. Em sua cadeira de balanço, rumina seus planos. Alguns andares abaixo, a Editora Brasiliense, agora a sua editora, que fundou com Artur Neves e Caio Prado Jr. 

É lá neste décimo segundo andar — a poucos quarteirões do velho Café Guarany e das velhas arcadas do Largo de São Francisco, que ele tanto viveu no começo do século — que Lobato tem seu escritório, recebe seus amigos, joga suas partidas de xadrez, escreve cartas aos amigos. São suas últimas cartas, onde se amiúdam as reflexões sobre a morte pressentida nas indisposições freqüentes, nos remédios receitados, no rigor da dieta prescrita. 

Remédios que Lobato não toma e prescrições que não segue, como que se recusando a retardar a morte, que chega solitária, na madrugada de 5 de julho. 

Seu enterro transforma-se numa apoteose gigantesca, conduzida pela multidão que vai velá-lo na Biblioteca Municipal e que depois carrega carinhosamente seu ataúde nos braços, até o Cemitério da Consolação. Fato que aponta decisivamente para a sintonia de Lobato com o Brasil de seu tempo. 

Sintonia que, como tudo o que diz respeito a Lobato, foi apaixonada e radical. 

Sintonia dolorosa e difícil, da qual Lobato foi ao mesmo tempo estrela e vítima. 

Reconheciam-no nas ruas, pediam-lhe autógrafos, entrevistavam-no a propósito de tudo, solicitavam-lhe prefácios e cartas de apresentação; mas suas entrevistas eram proibidas em jornais e rádios do Estado Novo, que não podiam sequer mencionar-lhe o nome... 

Lobato era amado pelas crianças, para as quais criara o sítio de Dona Benta. Com elas se correspondia, visitava-as em escolas e bibliotecas, quando submergia em carinhos e perguntas. Mas sua obra infantil foi proibida em bibliotecas, banida de escolas públicas, queimada em colégios religiosos. A marca de escritor infantil maldito foi ficando tão forte, que Lobato acabou transferindo seus títulos da Companhia Editora Nacional para a Editora Brasiliense, tanto incomodava a Octales a campanha sistemática contra os livros de seu ex-sócio... 

Sintonia, como se disse, difícil e dolorosa. E se a glória póstuma não cala a dor vivida, pode ao menos resgatá-la, dando-lhe um sentido. Que no caso de Lobato, talvez tenha começado a delinear-se nos milhares de braços que o carregaram até o Cemitério da Consolação e, mais do que isso, nos milhares de leitores para os quais, abrindo as porteiras do Sítio do Picapau Amarelo, Lobato abria também as porteiras de uma vida mais intensa e mais humana. 


in Monteiro Lobato; Lajolo, Marisa – Coleção Encanto Radical – Brasiliense – São Paulo, 1985

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