maio 05, 2009

1808



O historiador Tobias Monteiro acrescenta um detalhe pitoresco nesses passeios: o ritual que envolvia as necessidades fisiológicas do rei. Segundo ele, à frente da comitiva ia um moço de cavalariça, a que o povo chamava de “toma largas” — talvez porque abria espaço à passagem do rei ou por usar vestimentas de abas enormes. Esse vassalo montava uma besta, de cuja sela pendiam dois alforjes. Num ia a merenda de D. João VI. No outro, um penico e uma armação composta de três peças que funcionava como um vaso sanitário portátil, para ser usado em campo aberto. A certa altura do passeio, o rei murmurava alguma ordem, o moço descia da mula e montava o equipamento. “Então”, acrescenta o historiador, “o rei descia da carruagem e dele aproximava-se o camarista, que lhe desabotoava e arriava os calções. Diante dos oficiais e outras pessoas da comitiva, até da princesa Maria Teresa, sua filha predileta, quando esta o acompanhava, sentava-se beatamente, como se ninguém lhe estivesse em torno. Satisfeito o seu desejo, vinha um criado particular limpá-lo e de novo chegava o camarista, para ajudá-lo a se vestir.”18

Cumprida essa etapa, D. João retomava o passeio, até chegar a hora da merenda. Além da comida guardada no alforje do moço de cavalariça, o rei levava também um estoque extra de galinhas assadas e desossadas. Guardava os pedaços na algibeira do seu casacão encardido e ia comendo enquanto contemplava a paisagem ou parava para conversar com as pessoas que o saudavam pelo caminho. À noite, recebia seus súditos para o beija-mão. Ia se deitar por volta das 23h.19

Tobias Monteiro tem mais uma informação curiosa a respeito da intimidade do rei. Ele conta que os quartos do Palácio de São Cristóvão se abriam para uma varanda. D. João VI dormia sozinho num deles. Numa sala contígua, que dava para o interior do edifício, costumava receber visitas e despachar com ministros e oficiais do governo. Como essa sala de reuniões era o único acesso ao quarto do rei, os criados do palácio também tinham de passar por ela quando, pela manhã, precisavam esvaziar os penicos usados durante a noite por D. João. Dependendo da hora, essa tarefa era executada enquanto o monarca recebia alguns de seus convidados. Para evitar constrangimentos, os vasos eram cobertos com uma tampa de madeira, emoldurada por uma pequena cortina de veludo encarnado. “Mas esse fechamento era imperfeito e deixava escapar os elementos voláteis, que denunciavam seu conteúdo”, conta o indiscreto Monteiro.20

Pode-se dizer que, a esta altura, nem tudo cheirava bem na corte do Rio de Janeiro. Mas este nem de longe era o maior dos problemas.

18. Tobias Monteiro, História do Império, p. 95.
19. Pedro Calmon, O rei do Brasil, p. 227.
20. Tobias Monteiro, História do Império, p. 96. Monteiro baseia seu relato nas descrições de Américo Jacobina Lacombe, que Almeida Prado, em Thomas Ender, p. 102, diz ser “mexeriqueira” e não confiável como fonte.


1808 : como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil; Gomes, Laurentino – São Paulo: Planeta do Brasil, 2007. p. 303.
Ilustração (detalhe):  D. João VI – Maurício José do Carmo Sendim, 1786-1870 – Lisboa – Lithographia Regia – 35x26,2 cm. 

Um comentário:

Állan Toledo disse...

Fala Marcos, Fala Cid.

Essa carta de Pã, do Diabo, pode me ajudar no meu projeto. Vocês tem mais textos, livros, indicações?

Abraço,
Állan