maio 19, 2009

Travestis tipo exportação


Em quase todas as cidades brasileiras com mais de 500.000 habitantes, pode-se encontrar, ao lado da prostituição feminina, uma ativa prostituição de travestis. O delegado Guido Fonseca, um dos responsáveis pela mais recente onda de repressão aos travestis em São Paulo, calculava que em 1976, só nessa cidade, haveria em torno de 2.000 deles trabalhando na prostituição; numa única delegacia, ele contou 243 travestis fichados.3 Evidentemente, a questão não é simples, em se tratando de travestis, porque a prostituição acaba se tornando um fator quase inerente ao travestismo enquanto profissão. Geralmente vindos das camadas populacionais mais pobres do país, esses rapazes não encontram muitas opções, diante da família e da sociedade, para viverem sua homossexualidade. Independentemente do folclore dos concursos tipo Miss Brasil Gay, anualmente realizados entre os travestis, é indiscutível que eles precisam se prostituir, como um preço pago à sua compulsória marginalidade social. Cria-se então um efeito de bola-de-neve, em termos de violência: os clientes correm perigo de assalto, os travestis correm perigo de agressão; há, inclusive, vários casos onde travestis são espancados por grupos de machões ou simplesmente assassinados à queima-roupa, em plena avenida. Quanto à polícia, além de cobrar "taxas de proteção", pratica extorsões mais diretas, quando das batidas nas quais os travestis são presos e gratuitamente agredidos. Aliás, em certos lugares do Brasil, é comum a polícia prender travestis apenas para que façam limpeza gratuita nas delegacias e celas. Visando garantir seu direito de estar em via pública, sem serem acusados de vadiagem (já que, no Brasil, não existe crime de prostituição), muitos travestis solicitaram e conseguiram, no final da década de 70, que a Justiça lhes fornecesse habeas-corpus; que carregavam na bolsa. Num gesto bem característico de sua impune arbitrariedade, a polícia brasileira passou a apreender esses documentos, rasgando-os, provocadoramente, diante dos próprios repórteres. Muitas vezes, os travestis revidam também violentamente, atacando a polícia e depredando delegacias ou prisões. Mas a forma clássica de revanche, entre eles, é a auto-mutilação: às vezes até coletivamente, nas celas ou delegacias, praticam cortes nos próprios pulsos, braços, pescoços e até órgãos genitais, com pedaços de gilete cuidadosamente metidos debaixo da língua; é assim que conseguem ser transferidos para hospitais, de onde podem sair mais facilmente. Esses fatos foram objeto de um curioso trabalho onde o antropólogo Luís Mott analisa como, relegados à condição de párias, os travestis brasileiros criaram um inusitado sistema de coação e defesa mediante o recurso à auto-destruição.4

Para realizar prisões contra travestis, os motivos alegados pela polícia ainda são objeto de polêmica entre os juristas. Além da famosa acusação de "vadiagem", usa-se também a de "Importunação Ofensiva ao Pudor", presente na Lei das Contravenções Penais. Assim, uma portaria baixada em São Paulo, pelo então delegado de polícia da Seccional Centro, em 1976, determinava a prisão em flagrante de travestis encontrados na via pública, e solicitava que fossem fotografados em seus trajes femininos, para que "os MM. Juízes possam avaliar a sua nocividade". 5 Tais argumentos tornam a situação ainda mais confusa, sobretudo quando esse mesmo delegado aceita que, ao contrário da prostituição masculina, a feminina é um mal necessário para "preservar a moralidade dos lares".6 Há portanto, perante a lei, uma clara diferença de tratamento determinada pela homossexualidade em questão. Na verdade os travestis são considerados vadios por um juízo moral e não legal; evidência disso é que o acima mencionado delegado se refere a eles como "pervertidos". Tal confusão de conceitos não é nova, a julgar pelas informações. Desde o século passado a polícia vem, impunemente, fichando pessoas e às vezes instaurando contra elas inquéritos "por prática de pederastia passiva"; mas não só: em 1923, cinco homens foram fichados por pederastia ativa, em São Paulo onde, no ano de 1936, o Gabinete de Investigações da Polícia fichou criminalmente 38 bichas, instaurando inquérito contra 8 delas.7 

Essa teimosa repressão evidentemente não resolveu problema algum. Em São Paulo, os travestis que a polícia expulsou do centro da cidade acabaram indo prostituir-se em bairros de classe-média mais ermos, no começo dos anos 80. Expondo-se semi-nus ou mesmo inteiramente nus sob suas capas, é evidente que eles despertaram a fúria dos moradores, acostumados ao recatado lar cristão. Denunciando a prática de atos sexuais em carros ou mesmo ao ar livre, esses cidadãos reagiram com faixas e abaixo-assinados que pediam a intervenção da polícia. Não satisfeitos. iniciaram a elaboração de uma lista contendo o número das chapas, cuidadosamente anotados, dos carros dos clientes que freqüentam os travestis locais; e ameaçaram publicá-la como matéria paga nos jornais, para coagir os clientes a não mais comparecerem a esses encontros amorosos. Evidenciando que se trata de um gravíssimo problema social, a situação dos travestis pode se complicar graças a fatores inusitados. 



Em 1983, a cidade de São Paulo viu-se abalada pela notícia de que um grande número de travestis estava ameaçado de morte dolorosa, quando não efetivamente morrendo, em conseqüência da aplicação — nos seios, quadris e rosto — de silicone industrial tóxico, fraudulentamente vendido como silicone filtrado. Nem os médicos sabiam o que fazer para evitar que aumentasse o número de óbitos, até hoje desconhecido. Acuados dentro de um beco-sem-saída, os travestis brasileiros passaram a ver a Europa como seu grande sonho de viver uma vida tranqüila e financeiramente mais folgada. A partir do final da década de 70, grande número deles aportou em Paris, tida como o paraíso da prostituição para travestis. Lá, segundo consta, eles conseguiram fazer pequenas fortunas no trottoir ou, mais raramente, em shows de cabaré. No auge desse inusitado movimento migratório, houve até mesmo vôos charter organizados especialmente para transportar travestis do Brasil a Paris. Calcula-se que, dos 700 travestis trabalhando na França, 500 seriam brasileiros — com enorme sucesso na praça. É verdade que eram mais bem tratados pela polícia francesa do que pela brasileira: como informa o travesti Lora, "aqui me chamam de madame, enquanto no Brasil somos tratadas como verdadeiros animais". 8 Na França, porém, mudou apenas o pano-de-fundo, já que os travestis brasileiros continuam fundamentalmente vivendo à margem e sujeitos a outros tipos de extorsão, na mesma espiral de violência que tem provocado até assassinatos. Trabalhando em Paris, eles devem pagar uma fortuna pelo "ponto" na praça, além da taxa de proteção cobrada pela polícia, altíssimos preços de aluguéis e pequenas fortunas para obter documentação falsificada. Acima de tudo, não passam de exóticos objetos de consumo — tanto quanto eram exóticos os primeiros índios levados para a Europa, após a descoberta do Brasil. Além disso, a Associação pela Defesa das Prostitutas francesas mobilizou-se através de passeatas, cartas à Embaixada do Brasil, entrevistas aos jornais e TVs, alegando que os travestis brasileiros as ameaçavam com uma concorrência desleal, por não pagarem impostos, na condição de estrangeiros e clandestinos. Suspeita-se que, justamente em função desse episódio, o governo francês tinha passado a exigir visto de entrada obrigatório para todos os latino-americanos que chegam à França. Além de estarem ameaçando a mão-de-obra local, os travestis brasileiros foram acusados de ter provocado o aumento do índice de criminalidade na França.*

* Não será provavelmente a última nem foi a primeira vez que nossos travestis aportaram na Europa. É muito curioso, a respeito, o relato divulgado, com foto ilustrativa, nas publicações do antigo Instituto de Pesquisas Sexuais, do Dr. Magnus Hirschfeld, destruído pelos nazistas em Berlim, 1933. Trata-se do caso de um jovem brasileiro travestido que se apaixonou por um professor alemão, em Paris. De lá, viajaram juntos para a Alemanha, onde ficaram oficialmente noivos. Mas a dona da hospedaria desconfiou da história e denunciou a noiva. Quando o médico da polícia entrou no quarto para realizar o exame de perícia, a noiva brasileira ingeriu veneno, diante dele, e morreu. Isso aconteceu aparentemente no começo deste século. 9

3. "A prostituição masculina em São Paulo", de Guido Fonseca, in Arquivos da Polícia Civil, vol. XXX, São Paulo, 2º semestre de 1977, págs. 70/71. 
4. Gilete na carne: etnografia das auto-mutilações dos travestis da Bahia, de Luís Mott, 1981 (mimeo). 
5. apud Guido Fonseca, op. cit., pág. 76. 
6. apud Guido Fonseca, op. cit., pág. 76. 
7. Guido Fonseca, op. cit., pág. 67. 
8. "As estrelas caem", in Visão, São Paulo, 23 de agosto de 1982, pág. 46. 
9. apud  Race d'ep!, de Guy Hocquenghem, Éditions Libres/Hallier, Paris, 1979, pág. 85. 


in Devassos no Paraíso; Trevisan, João Silvério – Editora Max Limonad – São Paulo, 1986
Ilustrações: Guinigui over internet & Dirty: A Self Portrait by Sylvia Ji

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