dezembro 01, 2008

Cultura Política



A posição católica perante as doutrinas racistas é a de negação. No pensamento cristão o problema cósmico situa-se nas relações entre Deus e os homens dotados de razão e livre alvedrio, que hão-de ganhar pelo seu próprio esfôrço a glória eterna. O Cristianismo dá assim a todos os homens a possibilidade da salvação.

O que logo de início opôs a nova doutrina à fechada concepção judaica, era universalidade religiosa do Cristianismo que abria a todos os povos as portas da Glória destruindo assim a antiga concepção moisaica do povo eleito.

Logo no limiar da sua missão salvadora, Cristo deu à doutrina que pregava uma amplitude política e rácica que ultrapassava muito as fronteiras de Israel. Contra as restrições típicas do Velho Testamento, a Boa Nova espalhada pelo Evangelho é a verdade sob cujo pendão virão agrupar-se homens das mais diversas raças e condições.

Do cimo do Calvário, ao legar as sete cláusulas solenes do testamento escrito com o sangue divino, a cruz abria amorosamente os braços a tôdas as nações, simbólicamente congregadas na Jerusalém comerciante e pascal, romana e tetrárquica, idumeia e judia, num apêlo a todos os homens de boa vontade, sem qualquer distinção. Ecce filius tuus. Ecce mater tua. No testamento de Cristo todos os herdeiros foram reconhecidos como iguais.

O grande doutrinador da tese racista cristã, permita-se-nos a ousada imagem, foi S. Paulo a quem Deus confiou a tarefa da universalização do Cristianismo o que lhe valeu a designação que ainda hoje perdura de — Apóstolo das gentes.

S. Paulo substitui a idéia racista da antiga lei — transmitida de pais a filhos no povo judeu por meio da tradição da fé e do sangue e simbolizada na circuncisão — pela lei nova, bastante ampla para abranger os confins do mundo, tão alta que ia da terra ao Céu.

O rito externo interioriza-se e transforma-se na rectidão da conduta; a submissão da fórmula a uma determinada estirpe soçobra perante a prescrição de uma moral comum a tôdas as nações. A idéia restrita do judeu, é substituída pela idéia ilimitada do homem, o que representava o fim e a morte da idéia racista.

«O verdadeiro judeu — diz S. Paulo na «Epístola ad Romanos, II, 28-29» — não é o que se apresenta como tal ou o que se encontra circuncidado na carne, mas sim aquêle que é de alma e circuncidado no coração (Non enim quid in manifesto, judaeus est: neque quae in manifesto, in carne, est circumciso: sed qui in abscondito, judaeus est: et circumciso cordis i spiritu, mon littera: cuius laus mon ex hominibus, sed ex Deo est.). E na «Epístola ad Galatas III, 28-29, reafirma a universalidade do Evangelho, pão para tôdas as almas, religião que põe em igualdade perante Deus e pela primeira vez todos os homens: judeus e gentios, ricos e pobres, livres e escravos. (Quicumque enim in Christo baptizati estis, Christum induistis. Non est judaeus, neque Graecus: non est servus, neque liber: non est masculus, neque femina. Omnes enim vos unum estis in Christo Jesu. Si autem vos Christi: ergo semen Abrahae estis. secundum promissionem heredes).

Assim o primeiro grande teórico do Cristianismo denunciava e destruía o racismo como idéia e como doutrina, no aspecto que ele ao tempo apresentava. Todos os homens são filhos de Deus, irmãos em Cristo, remidos pelo mesmo sangue e herdeiros da mesma glória. Pedro e Paulo ao perecerem martirizados juntos, darão testemunho da verdade que proclamavam, como se Deus quisesse assim sublinhar que estavam destinados ao martírio porque O confessavam, homens das mais diversas procedências.

A depositária da pregação apostólica, a Igreja de Roma, herdou essa bandeira e gloriosamente a tem mantido até à actualidade afirmando sem desfalecimentos a sua condição de universal, de católica.

Segundo a etimologia helénica, católico equivale a universal, e uma das características que dão à Igreja Romana a sua autenticidade Cristã é a de ter cumprido o mandato de Cristo, conservando-se católica, isto é, universal. Tôda a filosofia católica está impregnada dêste pensamento universalista e essa é também a posição tomada perante tal problema pelos clássicos da nossa idade de oiro. Colocados no plano espiritual puro, desprezando o elemento raça, aceitavam que os judeus pudessem vir a ser bispos católicos e até lhes davam — maravilha do génio espanhol, cristão e acolhedor — o encargo de definir o dogma pela bôca do Padre Diogo Láinez.

Frei António de Guevara cuja insuspeita influência havia de chegar à Inglaterra, à Suécia e à România, tornando-se assim numa das mais representativas figuras da cultura europeia do seu tempo, ao determinar os caracteres de ordem geral que dividem os povos em nações, tão dentro da tese universal e espanhola se encontrava, que nem sequer toma em consideração o elemento rácico: «Hágoos saber que todos êstes reinos en muchas y muchas cosas son diversos; conviene a saber: en personas, en aiales (1), en metales, en aguas, en carnes, en costumbres, en leyes, em tierras, en edifícios, en vestido, en mantenimientos y, sôbre todo, son diversos en dioses y templos de Europa a los dioses y templos de Asia» (2).

Nem sequer falta a tese anti-racista expressamente formulada em palavras decalcadas sôbre as letras paulinas.

«Entre cristianos — afirma um português que escreve em espanhol e manda imprimir o livro em Itália, símbolo da universalidade hispânica — todos son miembros de un cuerpo, y en Ia religión unos, y hermanos en Jesu Cristo, en cuya presencia no hay diferencia de públicos ni naciones; de judios ni gentiles; de bárbaros ni de scithas, porque su fe y religión quitó todos los intervalos yatajos que distinguían entre si los pueblos y los ayuntó en su Iglesia» (3).

A idéia politica da Espanha estava conforme à doutrina prègada por S. Paulo e repetida pelo Doutor Bartolomeu Felipe.

As leis das Índias, tendentes a favorecer o matrimónio entre europeus e indígenas, são a prova cabal de uma atitude espiritual que por ser cristã não podia deixar de ser a mais humana.

Até as tendências modernas do nosso pensamento nacional, consciente ou inconscientemente, não renegaram a herança cristã do princípio da igualdade biológica. Um homem tão pouco suspeito de estar identificado com a atitude tradicional espanhola neste problema — D. José Ortega y Gasset — afasta com palavras contundentes as doutrinas racistas, procurando a diferenciação política mais no Estado do que no povo, na unidade de convivência e não na unidade racial.

«Es falso suponer — afirma de maneira cortante Ortega y Gasset — que la unidad nacional se funda en la unidad de sangre, y vice-versa. La diferencia racial, lejos de excluir la incorporacion histórica, subraya 10 que hay de específico en la génesis de todo gran Estado» (4).

Assim Ortega y Gasset chega a conclusões opostas às de Gobineau.

O Estado só é possivel, afirma Gasset, quando se consegue extirpar dos povos a noção de raça; o Estado é a fórmula superior que substitui a primária visão que reduz a história e a vida a uma seriação de caracteres biológicos.

E no entanto, Ramiro de Maeztu, um dos mais representativos defensores da nossa missão universalista, aplaudiu a iniciativa de um sacerdote espanhol, Zacarias de la Vizcarra, quando êste lançou a idéia da «Festa da Raça» como símbolo da unidade — anti-racista, sob o ponto de vista biológico — dos povos hispânicos. Mas ao aceitar essa idéia, Maeztu afirma que a Espanha não é uma raça una: «porque lo que llamamos raza no está constituido por aquellas caracteristicas que puedan transmitirse al través de las oscuridades protoplasmáticas, sino por aquellas otras que son luz del espíritu, como el habla y el Credo» (5).

A Hispanidade abarca desde o vasconço de raça milenária que nos deu os Ignacios e os Oquendos, ao nobre godo donde procedem os Gusmões, ao árabe dos Benhumeya, ao celta dos Camões, ao índio e ao malaio que ampararam a cruz e o braço de Castela. «Seria absurdo buscar sus características por los métodos de la etnografia», conclui Maeztu insistindo na posição da verdade católica e hispânica que distingue os homens pela bondade da alma e não pela côr da pele dos olhos e dos cabelos.


(1) Vocábulo que não existe no «Diccionario de la Real Academia Espanola» — 15ª Ed. — deriva de um vocábulo hebraico que significa: veado.

(2) Fr. António de Guevara — «Livro del famosissimo Emperador Marco Aurélio, con el Relox de Principes nuevamente añadido» — 237 folios — (1529 ?).

(3) Doutor Bartolomeu Felipe, português: «DeI consejo y de los consejeros de los Principes» — 2ª imp. — Turim — G. del Pernetto — 1589 Discurso XVIII, folio 153 (150 na errata).
Exemplo famoso de universalidade, êste livro escrito por um português em lingua castelhana, é dedicado a um alemão, o Arquiduque Alberto d' Austria, governador da Flandres como delegado do Rei de Espanha!

(4) «La Espana invertebrada» — en «Obras» — Esp. Calpe, 1932 — pág. 687.

(5) «Defensa de la Hispanidad» — 3ª Ed, Valhadolide — Cultura espanhola, 1938 — pág. 34.


in O Racismo; Spínola, F. E. de Tejada – Pro Domo – Lisboa, 1945
Ilustração: The Pink Candle – 1905 – Oil on canvas, 48,6 x 66,6 cm – Henry Rousseau

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