dezembro 07, 2008

História e Natureza



No início da História Ocidental, a distinção entre a mortalidade dos homens e a imortalidade da natureza, entre as coisas feitas pelo homem e as coisas que existem por si mesmas, era o pressuposto tácito da Historiografia. Todas as coisas que devem sua existência aos homens, tais como obras, feitos e palavras, são perecíveis, como que contaminadas com a mortalidade de seus autores. Contudo, se os mortais conseguissem dotar suas obras, feitos e palavras de alguma permanência, e impedir sua perecibilidade, então essas coisas ao menos em certa medida entrariam no mundo da eternidade e aí estariam em casa, e os próprios mortais encontrariam seu lugar no cosmo, onde todas as coisas são imortais, exceto os homens. A capacidade humana para realizá-lo era a recordação, Mnemósine, considerada portanto como mãe de todas as demais musas.
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Para compreender rapidamente e com alguma clareza quão distante nos encontramos hoje dessa compreensão grega da relação entre natureza e História, entre o cosmo e os homens, permitir-nos-emos citar quatro versos de Rilke e conservá-los em sua língua original, visto que sua perfeição parece desafiar qualquer tradução:
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Berge ruhn, von Sternen überpraechtigt;
aber auch in ihnen flimmert Zeit.
Ach, in meinem wilden Herzen naechtigt
obdachlos die Unvergaenglichkeit. 5
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Aqui, mesmo as montanhas parecem repousar apenas sob a luz das estrelas; são elas lenta e secretamente devoradas pelo tempo; nada é para sempre, a imortalidade abandonou o mundo para encontrar um incerto abrigo na escuridão do coração humano, que ainda tem a capacidade de recordar e dizer: para sempre. A imortalidade ou imperecibilidade, se e quando chega a ocorrer, não tem morada. Olhando-se estas linhas com olhos gregos, é quase como se o poeta houvesse tentado conscientemente inverter as relações gregas: tudo se tornou perecível, exceto talvez o coração humano; a imortalidade não mais é o meio em que se movem os mortais, mas refugiou-se, desabrigada no coração mesmo da mortalidade; coisas imortais, obras e feitos, eventos e até palavras, embora ainda possam os homens ser capazes de externalizar e como que reificar a recordação em seus corações, perderam seu abrigo no mundo; já que o mundo, já que a natureza é perecível, e já que as coisas feitas pelo homem, uma vez tenham adquirido o ser, compartilham a sina de todo ser, elas começam a perecer no instante em que vieram a existir.
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Com Heródoto, as palavras, os feitos e os eventos — isto é, as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens — tornaram-se o conteúdo da História. De todas as coisas feitas pelo homem, estas são as mais fúteis. As obras das mãos humanas devem parte de sua existência à matéria fornecida pela natureza, portando assim dentro de si, em alguma medida, permanência emprestada do ser-para-sempre da natureza. Mas o que se passa diretamente entre mortais, a palavra falada e todas as ações e feitos que os gregos chamaram de
prákseis ou prágmata, em oposição a poíesis, fabricação, não pode nunca sobreviver ao momento de sua realização e jamais deixaria qualquer vestígio sem o auxílio da recordação. A tarefa do poeta e historiador (postos por Aristóteles na mesma categoria, por ser o seu tema comum práksis 6) consiste em fazer alguma coisa perdurar na recordação. E o fazem traduzindo práksis e léksis, ação e fala, nesta espécie de poíesis ou fabricação que por fim se torna a palavra escrita.
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A História como uma categoria de existência humana é, obviamente, mais antiga que a palavra escrita, mais antiga que Heródoto, mais antiga mesmo que Homero. Não historicamente falando, mas poeticamente, seu início encontra-se, antes, no momento em que Ulisses, na corte do rei dos Feácios, escutou a estória de seus próprios feitos e sofrimentos, a estória de sua vida, agora algo fora dele próprio, um "objeto" para todos verem e ouvirem. O que fora pura ocorrência tornou-se agora "História". Mas a transformação de eventos e ocorrências singulares em História era, em essência, a mesma "imitação da ação" em palavras mais tarde empregada na tragédia grega 7, onde, como Burckhardt certa vez observou, "a ação externa é oculta do olho" através do relato de mensageiros, embora não houvesse absolutamente nenhuma objeção a mostrar o horrível 8. A cena em que Ulisses escuta a estória de sua própria vida é paradigmática tanto para a História como para a Poesia; a "reconciliação com a realidade", a catarse, que segundo Aristóteles era a própria essência da tragédia, constituía o objetivo último da História, alcançado através das lágrimas da recordação. O motivo humano mais profundo para a História e a Poesia surge aqui em sua pureza ímpar: visto que ouvinte, ator e sofredor são a mesma pessoa, todos os motivos de pura curiosidade e ânsia de informações novas, que sempre desempenharam, é claro, um amplo papel tanto na pesquisa histórica como no prazer estético, acham-se, naturalmente, ausentes do próprio Ulisses, que se teria enfastiado mais que comovido se a História não passasses de notícias e a Poesia fosse unicamente entretenimento. 
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(5) Rilke, Aus dem Nachlass des Grafen C. W., primeira série, poema X. Embora a poesia desses versos seja intraduzível, seu conteúdo poderia ser expresso da seguinte maneira: "Repousam as montanhas sob um luzeiro das estrelas; mesmo nelas, porém, bruxuleia o tempo. Ah! em meu selvagem e sombrio coração, jaz, desabrigada, a imortalidade". (Mountains rest beneath a splendor of stars, but even in them time flickers. Ah, unsheltered in my wild, darkling heart lies immortality). A tradução inglesa deve-se a Denver Lindley.
(6) Poética, 1448b25 e 1450aI6-22. Para uma distinção entre Poesia e Historiografia, ver ibid., cap. 9.
(7) Para a tragédia como uma imitação da ação, ver ibid., cap. 6, 1.
(8) Griechische Kulturgeschichte, Edição Kroener, II, p. 289.
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in Entre o passado e o futuro; Arendt, Hannah – Perspectiva – São Paulo, 1988
Ilustração: Foto na web, colada e modificada por Guinigui

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