dezembro 06, 2008

O balseiro



— Dize-me se o rio também te comunicou o misterioso fato de que o tempo não existe? — perguntou-lhe Sidarta certa feita.
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O rosto de Vasudeva iluminou-se num vasto sorriso.
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— Sim, Sidarta — respondeu. — Acho que te referes ao fato de que o rio se encontra ao mesmo tempo em toda a parte, na fonte tanto como na foz, nas cataratas e na balsa, nos estreitos, no mar e na serra, em toda a parte, ao mesmo tempo; de que para ele há apenas o presente, mas nenhuma sombra de passado nem de futuro. Não é isso que queres dizer?
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— Isso mesmo — tornou Sidarta. — E, quando me veio essa percepção, contemplei a minha vida, e ela também era um rio. O menino Sidarta não estava separado do homem Sidarta e do ancião Sidarta, a não ser por sombras, porém, nunca por realidades. Nem tampouco eram passado os nascimentos anteriores de Sidarta, como não fazia parte do porvir a sua morte, com o retorno ao Brama. Nada foi, nada será; tudo é, tudo tem existência e presente.
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Sidarta falava com entusiasmo, sentindo profunda felicidade em face dessa iluminação. Ah, sim! Todo o sofrimento pertencia ao tempo, da mesma forma que todos os receios e tormentos com que as pessoas se afligiam a si próprias. Todas e quaisquer dificuldades, tudo quanto houvesse de hostil no mundo sumir-se-ia, cairia derrotado, logo que o homem triunfasse sobre o tempo, logrando arredá-lo pelo pensamento. Sidarta falava, como que enlevado. Vasudeva, radiante, sorria para ele, confirmando, às vezes, as palavras do companheiro com um sinal de cabeça, porém, conservando-se em silêncio. Apenas acariciava com a mão o ombro de Sidarta. Em seguida, voltou ao seu trabalho.
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Em outra oportunidade, durante a época das chuvas, quando o rio estava cheio e rugia terrivelmente, disse Sidarta:
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— O rio tem muitas vozes, um sem-número de vozes; não é, meu amigo? Não te parece que ele tem a voz de um rei e a de um guerreiro, a voz de um touro e a de uma ave noturna, a voz de uma parturiente e a de um homem que suspira, e inúmeras outras ainda?
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— Tens razão — respondeu o balseiro. — Na sua voz concentram-se as vozes de todas as criaturas.
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— E tu — continuou Sidarta — sabes identificar a palavra que ele dirige a ti, sempre que consegues ouvir simultaneamente todas as dezenas de milhares de suas vozes?
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A fisionomia de Vasudeva irradiava satisfação. Inclinando-se para o amigo, sussurrou-lhe no ouvido o sagrado Om. Era exatamente isso o que Sidarta ouvira também.
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Dia a dia, o seu sorriso assemelhava-se mais ao do balseiro, chegando, quase, a irradiar a mesma luminosidade, a resplandecer de quase igual ventura, a luzir, tal e qual o do companheiro, através de milhares de ruguinhas; era o sorriso de uma criança e de um ancião também. Muitos viajores, ao avistarem os dois balseiros, tomavam-nos por irmãos. Freqüentemente, Sidarta e Vasudeva permaneciam sentados no tronco da árvore, junto à ribeira. Calados, escutavam o que lhes segredava a água, a qual, para eles, não era apenas água, senão a voz da vida, a voz do que é, a voz do eterno Devir. E, de quando em quando, sucedia que um e outro, prestando atenção aos murmúrios do rio, pensavam na mesma coisa, num colóquio mantido dois dias antes com um dos seus passageiros, cuja aparência ou cujo destino por algum motivo os preocupasse, na morte ou na infância, como também ocorria, sempre que o rio lhes confiava uma boa-nova, entreolharem-se ambos, com pensamentos idênticos, contentes de terem recebido a mesma resposta à mesma pergunta.
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Da embarcação dos dois balseiros partia algum fluido que certos viajantes notavam. Ocasiões havia em que um passageiro, após ter examinado o semblante de um dos remadores, começava a narrar os acontecimentos da sua vida, falando de suas tristezas ou confessando más ações. Ocasiões havia em que uma pessoa lhes pedia licença para ficar em sua companhia durante uma tarde, a fim de estudar o que o rio murmurava. Em outras ocasiões ainda, aparecia gente curiosa que ouvira falar de dois sábios, ou bruxos, ou santos, que viviam numa choupana, nas proximidades da balsa. Os indiscretos faziam numerosas perguntas, sem receberem respostas, e não encontravam nem bruxos nem sábios, senão apenas dois velhotes bonachões, que pareciam mudos e um tanto esquisitos ou abobados. E os indiscretos, rindo-se, comentavam entre si com que leviandade e credulidade o povo espalhava boatos dessa espécie.
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in Sidarta; Hesse, Herman – Record – São Paulo, 2000
Fotografia: Tony

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