março 21, 2007

Metáforas e imagens



...Neste caso, a problemática feminina apresenta algumas de suas características. A busca ao “estranho” engloba aqui tudo que foge à imagem construída para a mulher. É evidente que há diferenças no interior do grupo feminino recluso no hospício — de classe, de níveis de opressão e consciência quanto à sua condição, de instrução e de experiência pessoal e social. Mas perpassa todas estas histórias o dado comum de ter nascido mulher em uma cultura e em uma circunstância histórica em que este simples e fortuito evento é, de per si, tomado como uma deficiência. “Tudo o que diz respeito à mulher está mergulhado na natureza e suas leis. Seu corpo a ancora na natureza”, isto é, corpo destinado a “nutrir, compreender, abraçar, acolher, sustentar, revigorar, descansar a outros. A única subjetividade que lhe é reconhecida é a de viver uma constante doação ou uma constante anulação de si mesma".31
...Vestir-se e hornem, Viajar só. Recusar o casamento, a maternidade, a família. Manifestar uma independência essencialmente estranha àquela sociedade. No caso da loucura feminina, a transgressão não atinge apenas as normas sociais, senão à própria natureza, que a destinara ao papel de mãe e esposa. As metáforas e imagens literárias que cercam o discurso sobre a figura feminina são pródigas em caracterizar a mulher/natureza: a terra que nutre e sustenta, a árvore frondosa que oferece sombra e proteção, e até no reino animal foram os médicos e pedagogos buscar paralelos nem sempre muito felizes.32 Neste sentido, de modo geral, a sanção e a condenação para comportamentos anômalos acabam assumindo, no caso das mulheres, o caráter de julgamento muito mais profundo, e o comportamento “estranho” aparece aí como muito mais transgressivo: não o anti-social, mas o antinatural. Neste contexto, a loucura — doença terrível — não deixa de aparecer como uma vingança da natureza contra a violação de suas leis.
...Se a situação da mulher é específica, também as formas através das quais sua loucura se manifesta mantêm alguma particularidade. O delírio místico, por exemplo, é uma destas formas predominantemente femininas de enlouquecer: o abandono ou negação do próprio corpo, a "espiritualização" de indivíduos que se supõem santos, deuses ou seus porta-vozes, a prática comum da autoflagelação e do sacrifício. Poucos homens se apresentam no Juquery com este tipo de delírio — e há pouco a estranhar neste caso: se o dado da repressão sexual atinge também os homens, é para as mulheres que se dirige seu lado mais forte e negativo. Sem dúvida, o controle da sexualidade feminina constitui questão estratégica para a definição de sua função de reprodutora e perpetuadora da família, e o livre exercício da sexualidade, no seu caso, aparecia como um atentado à natureza e à família. O delírio místico, que aparece principalmente em mulheres pobres, é uma manifestação que ressalta e amplia até o desatino características impostas à figura feminina.

31. F. Basaglia Ongaro, “Mulheres e loucura”, in Gradiva, novembro/dezembro de 1983, pp. 13-4.
32. Cf., a este respeito, o excelente livro de Elisabeth Badinter, Um amor conquistado. O mito do amor materno. Rio, Nova Fronteira, 1985, no qual se lê, à p. 242, a seguinte citação extraída da obra Le Livre des Meres, 2ª ed., 1904, p. 5, de autoria do dr. J. Gérard: "Quando põe um ovo, a galinha não tem a pretensão de ser mãe por tão pouco. Botar um ovo não é nada... mas onde começa o mérito da galinha, é quando ela choca com consciência, privando-se de sua querida liberdade... numa palavra, é quando desempenha seus deveres de mãe que ela faz jus realmente a esse título".



in O espelho do mundo: Juquery, a história de um Asilo; Cunha, Maria Clementina Pereira – Paz e Terra – Rio de Janeiro, 1986 – Ilustração: Fotografia de prontuário (1918). Mulher internada por viajar só, vestida como homem.

2 comentários:

rediqueti Overland disse...

Eu não estou entendendo mais nada!

Anônimo disse...

Bela enlocada. Mérito de galinha.