março 07, 2007

Uma Um

.
.
...No seu dorso, entre almofadas de lã azul, pernas cruzadas, pálpebras semicerradas e balançando a cabeça, há uma mulher tão esplêndidamente vestida, que projeta raios ao seu redor. A multidão prostra-se, o elefante dobra os joelhos, e
.
A RAINHA DE SABÁ
deixando-se escorregar pelo dorso do animal, desce sôbre os tapêtes e caminha para Santo Antão. Seu vestido de brocado de ouro, dividido regulartnente por fieiras de pérolas, de azeviche e safiras, ajusta-lhe o talhe num corpete apertado, realçado por aplicações de côr, que representam os doze signos do Zodíaco. Traz sapatos muito altos, dos quais um é prêto e salpicado de estrêlas de prata, com um crescente de lua, e o outro branco, e coberto de gotículas de ouro com um sol no meio.
...Suas largas mangas, guarnecidas de esmeraldas e plumas de ave, deixam a descoberto o pequeno braço roliço, cingido no punho com um bracelete de ébano, e as suas mãos, carregadas de anéis, terminam com unhas tão aguçadas que as pontas dos dedos quase se assemelham a agulhas. Uma" corrente de ouro achatada, passando-lhe sob o queixo, sobe ao longo de suas face$, enrola-se em espiral à volta do penteado empoado de azul, depois, descendo de novo, roça-lhe os ombros e vem prender-se no peito a um escorpião de diamante, que estende a língua entre os seus seios. Duas grandes pérolas amarelas pendem-lhe das
orelhas. A borda de suas pálpebras está pintada de prêto. Tem na face esquerda uma pinta escura, natural; e respira abrindo a bôca, como se o espartilho a incomodasse.
...Sacode, caminhando, um guarda-sol verde, com cabo de marfim rodeado de campainhas vermelhas; e doze pretinhos de cabelos encarapinhados seguram-lhe a longa cauda do vestido, da qual um símio leva a extremidade, que levanta uma vez ou outra.
...Ela diz:

— Ah! Belo eremita! Belo eremita! Meu coração desfalece!
.
.

–•–
.
.
De repente aparece
.
UM HOMEM NU
sentado no meio da areia, com as pernas cruzadas.
...Um grande halo vibra, suspenso atrás dêle. Os pequenos anéis de seus cabelos negros, de reflexos azulados contornam simetricamente uma protuberância que êle tem no alto da cabeça. Os braços, muito compridos, descem perpendicularmente aos flancos. As mãos, de palmas abertas, repousam em tôda a largura, sôbre as coxas. A planta dos pés mostra a imagem de dois sóis; e êle, permanece completamente imóvel — em frente de Antão e Hilarião, com todos os deuses ao seu redor, escalonados nas rochas, como nas arquibancadas de um circo.
...Seus lábios se entreabrem e, com voz profunda:

— Eu sou o senhor da grande esmola, o socorro das criaturas, e, aos crentes como aos profanos, eu exponho a lei.



in A tentação de Santo Antão; Flaubert, Gustave – Melhoramentos – São Paulo, sd. – Tradução, prefácio e notas: Carlos Chaves – Ilustração: Pedro Riu

Nenhum comentário: