março 05, 2007

VII Bucólica

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Nota lntrodutória

..."Melibeu" – assim H. Goelzer expõe o argumento da VII Bucólica – "é um compônio detentor de pequena propriedade, que cultiva sozinho. Um dia, enquanto abrigava seus mirtos contra os frios tardios, seu bode escapou-lhe à vigilância e fugiu do rebanho. Este se dispersou e Melibeu se pôs a procurá-lo. No entretempo, deparou-se com Dáfnis que, depois de tê-lo tranqüilizado sobre a sorte do bode e do rebanho, convidou-o a assistir a um concurso poético entre Córidon e Tírsis. Melibeu consente (1 a 20) e, de memória, nos faz ouvir as coplas, de quatro versos cada uma, que trocam os dois rivais. A primeira parte dessas coplas encerra invocações aos deuses campestres (21-36); na segunda, Córidon e Tírsis cantam seus amores (37-68). O prêmio é conferido a Córidon (69-70). "Por quê? Supunha-se que na última copla Córidon se mostrara superior; à sua delicada homenagem a Fílis. Tírsis opusera apenas a comparação de Lícidas a uma árvore, o que indicava que perdera o fôlego. Perret, no entanto, aponta que no plano moral os dois exibem uma diferença muito sensível: Tírsis é difamante, invejoso, vulgar, sempre voltado para si mesmo; Córidon é capaz de admiração e de espontaneidade, o que tem conseqüências até no vocabulário e na estrutura dos versos de cada um.
...O ambiente do poema, que não é tomado a uma Sicília convencional, mas à paisagem cisalpina, sendo o rio Míncio expressamente citado, considera-se puramente virgiliano. Deve a Bucólica a Teócrito apenas a maneira geral do poema, com a forma amebéia de quatro versos, e alguns pormenores dos Idílios VII, IX e XI. Assinala Saint-Denis que um epigrama de Eríquio (Ant. PaI. VI, 96) põe em cena dois boieiros, ambos árcades e um dos quais se chamava Córidon, e que a influência dos epigramatistas surge também em várias copias do canto amebeu.
...A data da composição, dentro dos limites extremos das Bucólicas, é impossível de estabelecer, segundo Saint-Denis, embora em tempos anteriores M. Plessis lhe atribuísse o ano de 40 a.C., sendo ela a sexta em ordem de feitura; ou seria a quarta, como desejava Ribbeck? O próprio Goelzer entendia imprópria qualquer opção. Em todo caso, a bucólica deve ser posterior à lI, se o v. 55 (formosus Alexis) ecoa o verso inicial da lI, formosum Alexim.
..."A preferência dada a Córidon guia nossa leitura e permite estudar esta peça como um catecismo da estética virgiliana. A poesia bucólica tem por fim suscitar ou revelar um mundo extasiado, radioso, onde a beleza é igualmente nobreza, bondade; o homem deve abrir-se nele com espírito de confiança e de acolhimento; nada do que ele encerra em si de melhor aí será jamais desmentido. (...) B 7 nos traz alguns ecos do mais puro paraíso." (Perret)


VII

MELIBEU



MELIBEU

Sonora, uma azinheira à sua sombra tinha Dáfnis,
e Córidon e Tírsis misturavam seus rebanhos:
Córidon cabras túmidas de leite, ovelhas Tírsis;
ambos estavam no florir da idade, árcades ambos,
hábeis de modo igual no canto, e destros na resposta. 5
Do frio guardo os tenros mirtos, e enquanto isso aqui
o macho vaga do rebanho, o próprio bode; e vejo
Dáfnis que, ao ver-me por seu turno, diz: "Vem cá depressa.
ó Melibeu! a salvo estão teu bode e os teus cabritos
e, se podes parar, descansa um pouco aqui à sombra. 10
Aqui virão beber, cruzando os pastos, os novilhos;
aqui de tenra cana o Míncio borda as verdes margens
e no oco do sagrado roble runem os enxames".
Que fazer? Eu não tinha Alcipe, nem tampouco Fílis,
para prender no estábulo os cordeiros desmamados; 15
e Córidon e Tírsis iam competir, que bom!
Pelo certame de ambos preteri as coisas sérias.
Começaram pois eles a lutar com o verso alterno,
que as Musas desejavam esses versos alternados.
Eis os de Córidon; e eis os de Tírsis em resposta. 20


CÓRIDON

Ninfas Libétrides, ó nosso amor, um canto dai-me
igual ao de meu Codro, cujos versos se aproximam
dos de Febo; ou, se não podemos todos obter isso,
do pinho santo penderá minha sonora frauta.


TÍRSIS

O pastores da Arcádia, de hera coroai um poeta 25
que nasce, para que de inveja disso estoure Codro;
ou, se louvar-me sem medida, então cingi-me a fronte
de bácar, que não fira a língua má o vate futuro.


CÓRIDON

Consagra-te esta fronte de cerdoso javali
o jovem Mícon, Délia, e as galhas de longevo cervo.
30
Uma estátua de mármore polido tu terás,
se esta sorte durar; nas pernas, um coturno púrpura.


TÍRSIS

Só um jarro de leite, Ó Priapo, e estes sagrados bolos
terás de mim por ano; és guarda de um cercado exíguo.
Provisório, fizemos-te de mármore; mas de ouro
35
tu serás, se de crias os rebanhos se povoarem.


CÓRIDON

Nereida Galatéia, ó doce, mais que o timo de Hibla,
mais cândida que o cisne e mais formosa que a hera branca,
quando os touros saciados procurarem seus estábulos,
se algum cuidado tens de Córidon, oh vem então.
40


TÍRSIS

Amargo eu te pareça, mais que as ervas da Sardenha,
mais rude que o azevinho, mais banal que a alga na praia,
se não acho este dia mais comprido do que um ano.
Caso tenhais algum pudor, novilhas, recolhei-vos.


CÓRIDON

Fontes musgosas, relva mais suave do que o sono, 45
tu, verde medronheiro, que de rara sombra as cobres,
defendei o rebanho do solstício: o estio tórrido
já está chegando, e os brotos incham na videira fértil.


TÍRSIS

É aqui um lar, e resinosas tochas, fogo espesso,
contínuo; umbrais escuros da fumaça permanente;
50
aqui ligamos tanto a Bóreas e a seu frio, quanto
o lobo a se o rebanho é grande e o rio a suas margens.


CÓRIDON

Agora erguem-se os zimbros e os hirsutos castanheiros;
cá e lá caídos, sob as árvores se vêem seus frutos;
agora tudo ri; contudo se o formoso Aléxis
55
partisse destes montes, até os rios secariam.


TÍRSIS

O campo seca; o ar leva a morrer de sede as ervas;
recusa Líber à colina a sombra de um sarmento:
o bosque reverdecerá, chegando a nossa Fílis,
e Júpiter em chuva espessa cairá copioso.
60


CÓRIDON

O choupo agrada a Hércules, a vide agrada a Baco,
o mirto agrada à bela Vênus, seu loureiro a Febo;
Fílis preza a avelã; e enquanto Fílis a prezar
nem mirto nem loureiro vencerão as avelãs.


TÍRSIS

Lindíssimo na mata é o freixo, o pinho nos jardins, 65
o choupo à beira-rio, o abeto nas montanhas altas;
mas se me vires mais amiúde, Ó Lícidas formoso,
o freixo ceder-te-á na mata, o pinho nos jardins.


MELIBEU

Isto eu recordo, e Tírsis derrotado em vão lutando;
Córidon para nós é Córidon desde esse tempo.
70


***


MELIBOEVS

Forte sub arguta consederat ilice Daphnis,
compulerantque greges Corydon et Thyrsis in unum,
Thyrsis Quis, Corydon distentas lacte capellas,
ambo florentes aetatibus, Arcades ambo,
et cantare pares et respondere parati. 5
Huc mihi, dum teneras defendo a frigore myrtos,
uir gregis ipse caper deerrauerat ; atque ego Daphnim
adspicio. Ille ubi me contra uidet : « Ocius » inquit
« huc ades, o Meliboee ; caper tibi saluos et haedi,
et, si quid cessare potes, requiesce sub umbra. 10
Huc ipsi potum uenient per prata iuuenci ;
hic uiridis tenera praetexit harundine ripas
Mincius, eque sacra resonant examina quercu. »
Quid facerem ? neque ego Alcippen, nec Phyllida habebam,
depulsos a lacte domi quae clauderet agnos, 15
et certamen erat, Corydon curo Thyrside, magnum.
Posthabui tamen illorum mea seria ludo.
Alternis igitur contendere uersibus ambo
coepere ; alternos Musae meminisse uolebant.
Roa Corydon, illos referebat in ordine Thyrsis. 20



CORYDON

Nymphae, noster amor, Libethrides, aut mihi carmen,
quale meo Codro, concedite (proxima Phoebi
uersibus ille facit), aut, si non possumus omnes,
hic arguta sacra pendebit fistula pinu.



THYBSIS

Pastores, hedera nascentem ornate poetam, 25
Arcades, inuidia rumpantur ut ilia Codro ;
aut, si ultra placitum laudarit, baccare frontem
cingire, ne uati noceat mala lingua futuro.


CORYDON

Saetosi caput hoc apri tibi, Delia, paruos
et ramosa Micon uiuacis cornua cerui. 30
Si proprium hoc fuerit, leui de marmore tota
puniceo stabis suras euincta cotumo.


THYBSIS

Sinum lactis et haeo te liba, Priape, quotannis
exspectare sat est : custos es pauperis horti.
Nunc te marmoreum pro tempore fecimus ; at tu, 35
si fetura gregem suppleuerit, aureus esto.


CORYDON

Nerine Galatea, thymo mihi dulcior Hyblae
candidior cycnis, hedera formosior alba,
cum primum pasti repetent praesepia tauri,
si qua tui Corydonis habet te cura, uenito. 40


THYBSIS

Immo ego Sardoniis uidear tibi amarior herbis,
horridior rusco, proiecta uilior alga,
si mihi non haec lux toto iam longior anno est.
Ite domum pasti, si quis pudor, ite, iuuenci.


CORYDON

Muscosi fontes, et somno mollior herba, 45
et quae uos rara uiridis tegit arbutus umbra,
solstitium pecori defendite : iam uenit aestas
torrida, iam lento turgent in palmite gemmae.


THYBSIS

Hic focus et taedae pingues, hic plurimus ignis
semper, et adsidua postes fuligine nigri ; 50
hic tantum Boreae curamus frigora, quantum
aut numerum lupus aut torrentia flumina ripas.


CORYDON

Stant et iuniperi et castaneae hirsutae ;
strata iacent passim sua quaeque sub arbore poma ;
omnia nunc rident : at, si formosus Alexis 55
montibus his abeat, uideas et flumina sicca.


THYBSIS

Aret ager ; uitio moriens sitit aeris herba ;
Liber pampineas inuidit collibus umbras :
Phyllidis aduentu nostrae nemus omne uirebit,
Iuppiter et laeto descendet plurimus imbri. 60


CORYDON

Populus Alcidae gratissima, uitis Iaccho,
formosae myrtus Veneri, sua laurea Phoebo,
Phyllis amat corylos ; illas dum Phyllis amabit,
nec myrtus uincet corylos, nec laurea Phoebi.


THYBSIS

Fraxinus in siluis puJoherrima, pinus in hortis, 65
populus in fluuiis, abies in montibus altis :
saepius at si me, Lycida formose, reuisas,
fraxinus in siluis cedat tibi, pinus in hortis.


MELIBOEUS

Haec memini, et uictum frustra contendere Thyrsim
Ex illo Corydon Corydon est tempore nobis. 70


***


7. cf. Teócr. VIII, 49.

11. iuuenci: o v. deve apoiar o convite feito a Melibeu; esses touros, pois, lhe pertencem; ele tem dois rebanhos, como o Dametas de B 3 que faz pastar a um tempo ovelhas (v. 3) e vacas (v. 29). – Perret.

14. Alcipe e Fílis são servas de Melibeu, com as quais ele não pode contar aquele dia; ou servas, companheiras, de Córidon e de Tírsis: Melibeu lastima não ter correspondentes para auxiliá-lo (Perret). Para Cartault, e Plessis e Lejay, Alcipe e Fílis são servas, respectivamente, de Córidon e Tírsis: no v. 59 Tírsis diz Phyllidis nostrae.

21. Libethrides: as Ninfas do Libetro, gruta do Hélicon, são as Musas. Perret vê nessa designação de Ninfas uma associação mais sensível à vida dos pastores.

27. segundo os escólios, o bácar preservava contra os sortilégios.

29. Délia: Diana (Artemis) nasceu na ilha de Delos.

33. Príapo: deus da fertilidade em geral, representado com forma itifálica.

37. cf. Teócr., XI, 19-21, embora os pormenores sejam diferentes. Quanto a Hibla, vid. I Buc., 54.

41. Herbis Sardoniis: as ervas da Sardenha seriam os ranúnculos, cujo suco, amargo, provocava nos lábios contrações semelhantes ao riso.

42. uilior alga, que ocorre também em Horácio, Sat. II., 5, 8, devia ser expressão proverbial, no parecer de Plessis e Lejay. Proiecta, lançada à praia.

45. cf. Teócr. VIII, 37 e V, 51.

50. as casas dos campônios não tinham chaminé; às vezes, uma abertura no teto. Daí a fumaça nos umbrais.

53. hirsutae aplicada às castanheiras é uma hipálage; hirsutas são as castanhas, não as castanheiras.

54. cf. Teócr. VII, 144.

58. Liber, Líber: deus itálico cedo identificado com Dionisos
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in Bucólicas; Virgílio – trad. e notas Péricles Eugênio da Silva Ramos – Melhoramentos – São Paulo, 1982

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